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O padre que fez Isaac Newton viajar em um cometa sobre o céu de Salvador

Descrever e escrever sobre o céu da Bahia parece algo não muito distante do território da poesia, do cancioneiro, especialmente num lugar que tão bem frui e canta suas belezas. Sob o céu de Salvador, muita gente já arriscou versos e declarações sobre ele, mas certamente ninguém chegou tão longe quanto um jesuíta astrônomo que veio da Europa para morar na cidade, conviveu com o Padre Antônio Vieira, foi satirizado pelo boca do inferno Gregório de Matos e ainda influenciou o físico inglês Isaac Newton. Essa é um pouco da história de Valentim Stansel (1621-1705), que nasceu na cidade de Olomouc, hoje parte da República Tcheca, e que acaba de ter um de seus livros traduzidos do original, em latim, para o português.

Stansel era membro da Companhia de Jesus e tinha vontade de ser mandado em missão para a China. Depois de duas recusas, seu pedido enfim foi aceito, mas uma estadia em Lisboa alterou seu destino. Não bastasse a guerra entre Portugal e Espanha, ali em meados do século 17, havia um conflito entre o comando da Companhia de Jesus, em Roma, e os jesuítas do Brasil. 
 
“Estava tendo uma tensão grande, e o comando da Companhia de Jesus decidiu mandar um interventor para o Brasil, embarcando junto muitos jesuítas que estavam em Lisboa”, explica o físico Carlos Ziller, tradutor do livro “Uranófilo — o peregrino celeste ou os êxtases da mente urânica peregrinando pelo mundo das estrelas”, lançado pela editora Fino Traço em parceria com a Edufba.

Originalmente, o livro foi escrito por Valentin Stansel em latim e lançado em 1685. Ele chegou a Salvador (então capital do Brasil colônia) em 1663 e foi morar no Colégio dos Jesuítas, onde hoje fica um dos prédios da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), no Terreiro de Jesus. O livro foi escrito por ele na Quinta do Tanque (atual sede do Arquivo Público do Estado), enquanto estava em um retiro espiritual. Era lá que Stansel fazia também observações astronômicas com uma luneta que ele mesmo construiu.

“Uranófilo” é uma ficção celeste com um diálogo sobre astronomia entre o personagem principal, Uranófilo, e as musas Urânia (a musa do Céu) e Geonisbe (a musa da Terra). A história se passa na Salvador daquele mesmo período. Em momentos de êxtase, o personagem principal e as musas fazem viagens interplanetárias pela porção do Sistema Solar conhecida à época.

Capa do livro original, em latim, e a recém-lançada tradução comentada para o português (Foto: Reprodução)

Treta com Vieira
Traduzido pela primeira vez para o português, “Uranófilo” chegou ao conhecimento de Carlos Ziller há 30 anos. Há duas décadas, ele começou os primeiros rascunhos do que veio a ser lançado agora. Entre 2017 e 2018, dedicou-se exclusivamente à conclusão do trabalho. “O texto é todo em barroco, em latim, você imagina a dificuldade”, diz ele sobre a tradução. “Hoje a leitura do [Padre Antônio] Vieira é penosa, agora você imagina o Vieira escrito em latim”, diz Ziller, comparando a escrita de Stansel à do padre que, apesar da alfinetada do acadêmico, foi chamado pelo compatriota Fernando Pessoa de “imperador da língua portuguesa”. 
 
Bom, mas essa realeza (post-mortem) não era enxergada por Stansel, e ele não reverenciava o colega de batina. Muito pelo contrário. Vieira e Stansel não se davam bem. “Teve um período que ele teve uma briga séria com o padre Antônio Vieira, que mandou ele para Olinda”, conta Ziller. 
 
Alvo do Boca do Inferno
Stansel ficou na capitania de Pernambuco por alguns anos e depois retornou a Salvador, sem passar incólume pela pena do poeta Gregório de Matos. O soneto “A El Rey D. Pedro II com um astrolábio de tomar o sol que mandou o Pe. Valentim Stancel dedicado ao renascido monarca” ironiza o astrônomo quase baiano, que presenteou o rei de Portugal com um astrolábio.

“Este, Senhor, que fiz leve instrumento
Para pesar o sol a qualquer hora,
Dedico a aquele Sol, a cuja aurora
Já destinam dous mundos rendimento.

Desta minha humildade, e desalento,
Que a sua quarta esfera não ignora,
subindo a oitavo céu, pertende agora
A estrela achar no vosso firmamento.

Eu, que outro sol no seu zenith pondero
Aos do Nascido Soberanos Raios,
Pesando-me eu a mim me desespero.

Mas vós, Águia Real, esses ensaios
Entre os vossos levai, pois considero,
Que nunca em tanta sombra houve desmaios”.

A maçã e o cometa
Em 1687, o físico Isaac Newton, que mais tarde tornaria-se célebre, escreveu o livro ‘Princípios Matemáticos da Filosofia Natural’ (‘Principia’), um dos livros mais importantes da história, e obra fundamental para a ciência moderna. Provavelmente, a história de que uma maçã caiu bem na sua cabeça e o despertou para o efeito da gravidade é um exagero. Mas a noção de que a observação das maçãs caindo das árvores também o ajudou em seus estudos é bem aceita por historiadores.

Simbolicamente, uma das maçãs que caíram na cabeça do protestante Newton, antes de escrever seu livro mais importante, foi arremessada por Valentim Stansel. Em Salvador, o jesuíta observou a passagem de um cometa em 1668. As discussões à época divergiam sobre onde estava o cometa, se dentro ou fora da atmosfera terrestre.

“As observações de Stansel, no hemisfério sul, tiveram um papel importante. Se o cometa aparecesse, nas observações dele, em constelações parecidas com aquelas que estavam no hemisfério norte, isso significava que o cometa estava muito longe da Terra”, explica Ziller.

Um artigo escrito por Stansel foi publicado na Itália, e depois traduzido para a língua inglesa em um periódico da recém-criada Royal Society. “A partir dessa publicação, Newton, Halley e outros ingleses tomaram contato com as observações de Stansel”, conta Ziller. O Halley em questão era Edmond Halley, que depois virou nome do cometa mais conhecido de todos.

“Quando Newton estava escrevendo o livro, ele arrolou um monte de observações de cometas feitas no mundo inteiro, inclusive a de Stansel”. Segundo Ziller, é provável que Stansel nunca tenha tomado conhecimento da citação dele feita por Newton. “O livro de Newton só ficou muito difundido nas primeiras décadas do século 18, quando Stansel já estava morto”, pontua sobre o ‘Principia’.
 
Citações
O professor Marcio Luis Ferreira, da Escola Politécnica, do Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Ufba, destaca em um artigo publicado no CORREIO que as observações de Stansel eram tão precisas que foram publicadas em alguns dos principais jornais e revistas científicos ao redor do mundo, a exemplo de Alemanha e França. 
 
O primeiro jornal, citado acima por Ziller, foi o italiano Il Giornale dei Letterati 11 (1673), no qual Stansel escreveu sobre as observações feitas a partir da capital baiana: “o que causou espanto foi que desde o princípio se fez ver no seu maior tamanho e com uma luz viva além do normal, ao contrário dos outros cometas que aparecem tênues e depois vão aumentando”. No ano seguinte, o trabalho foi publicado no Philosophical Transactions (1674), e a partir daí atravessou o mundo como um cometa.
 
No ‘Principia’ de Newton, lançado em 1687, estão assim reproduzidos os comentários de Stansel sobre o cometa que passou no céu de Salvador, com direito a dia, horário e tudo mais:

“Em 5 de março de 1668 A.D., às 7h da tarde o Reverendo Padre Valentinus Estancius, estando no Brasil, viu um cometa perto do horizonte, direção sudoeste, com uma coma [ou cabeleira] muito pequena e dificilmente discernida, mas com uma cauda de esplêndida medida, de modo que a sua reflexão a partir do mar era facilmente vista por aqueles que estavam na costa; e parecia um raio de fogo prolongado de 23 graus de comprimento do oeste ao sul, quase paralelo ao horizonte”.

“O genial Newton perpetuou no primeiro e mais famoso livro de física já escrito, Principia Mathematica, o nome Brasil”, comenta Ferreira. Faltou especificar que fora em Salvador, mas tudo bem.
 
Produção científica na colônia
Stansel e os jesuítas acreditavam que o Sol girava em torno da Terra, ao contrário de Isaac Newton, Edmond Halley e de seus predecessores, o padre Nicolau Copérnico e Galileu Galilei. As observações de Stansel usadas por Newton não constam em “Uranófilo”, mas seu livro teve duas resenhas positivas na Europa.

A tradução de Ziller, que tem 394 páginas, foi lançada pela Edufba junto com a editora mineira Fino Traço. “Já desde que eu comecei a projetar a edição deste livro, eu queria que ele fosse editado em Salvador porque Stansel viveu em Salvador”, explica Ziller. “Eu sou meio purista com essas coisas. O cara viveu em Salvador, escreveu o livro em Salvador, o livro é sobre Salvador”, acrescenta.

“A parceria com a Edufba está relacionada também ao papel de liderança que em muitas áreas a Ufba vem se destacando, principalmente nessa área de História da Ciência”, ressalta Ziller. Se, como se diz, quem olha para o céu vê o passado, Carlos Ziller quer mostrar aos estudiosos que, no passado, havia produção científica no Brasil colonial.

***

A salvador da época do reverendo astrônomo
No período em que Valentim Stansel viveu no Brasil (inclusive morreu aqui, em 1705), Salvador era uma das mais importantes cidades do Hemisfério Sul, e construiu esse legado de forma, digamos, natural. “Foi a primeira capital do Brasil, sede do Estado do Brasil, então Salvador foi onde os portugueses investiram todo seu aparato burocrático, militar, administrativo, judicial e, até mesmo, religioso. Então, a cidade nasce como sede do Governo Geral, e segue assim nos dois séculos seguintes”, assinala Fabricio Lyrio, professor de História do Brasil e dos Povos Indígenas na Universidade Federal do Recôncavo (UFRB).
 
De maneira geral, a Salvador seiscentista era parte de uma sociedade portuguesa mais ampla, com suas adaptações próprias ao espaço colonial – incluindo o importante ingrediente da escravidão -, mas dentro de uma hierarquização de cunho mais religioso. 
 
Dentro da complexidade social do período, destaca o professor, a igreja tinha um papel fundamental, “exatamente porque a sociedade portuguesa se via e se constituía enquanto uma sociedade cristã, católica.” Lyrio lembra que essa condição foi ainda mais forte no Brasil, já que, com as navegações, e a expansão portuguesa, os reis de Portugal foram incumbidos pela Igreja Católica de evangelizar as terras descobertas, ou invadidas. “Havia uma proximidade muito grande entre o trono e o altar, entre o Estado e a igreja. E isso se reflete, por exemplo, no fato de que os bispos, por vezes, ocupavam o cargo de governadores”. Isso aconteceu, por exemplo, durante a Invasão Holandesa a cidade, em 1624, quando um bispo assumiu o governo.
 
Os jesuítas, como é o caso do nosso padre astrônomo, vieram ao Brasil enquanto agentes da coroa portuguesa, “com uma tarefa de evangelizar as populações nativas, e essa tarefa é delegada diretamente pelo próprio rei de Portugal.” O professor Fabricio Lyrio lembra que, não por acaso, havia muitas correspondências, cartas, direcionadas ao próprio rei, “relatando os frutos da sua missão de conversão dos povos indígenas, e isso vai perdurar até a expulsão dos jesuítas, no século 18”. 
 
“Mas, no momento que estamos tratando, no século 17, os jesuítas ocupam esse espaço de participarem das decisões políticas”, comenta o professor, que é autor do livro ‘Te Deum laudamus: a expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-1763)’, lançado pela a editora Sagga em 2019.

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