Hospital Maggiore em Bolonha, doutora Maria Teresa Fiandri, curva Tamburello. Nomes que são capazes de despertar das profundezas da memória quando nos vem a lembrança daquele dia primeiro de maio de 1994, que caiu num domingo como o desse ano.
A vida de Ayrton Senna está destinada a ser contada a partir do fim, de trás pra frente, tamanho o impacto daquele inesperado último capítulo. Mas até o início da manhã daquele dia, a possibilidade de Senna morrer simplesmente não existia na cabeça de ninguém. Era um acontecimento que residia no impensável, no absoluto impossível.
Para crianças e adultos que se dedicavam igualmente a acompanhar a Fórmula 1, a tragédia que aconteceu naquela manhã de domingo deixou uma marca que dividiu a vida em antes e depois. Um chocante e eletrizante momento histórico que dizia respeito a todos, resultando na maior comoção popular que já vimos.
Nove anos e dez dias antes do acidente fatal de Ayrton Senna em Ímola, o Brasil também viveu um dia de comoção nacional, com a morte de Tancredo Neves. Mas naquele mesmo 21 de abril de 1985, debaixo de chuva torrencial no circuito do Estoril, em Portugal, Senna conquistou sua primeira vitória na Fórmula 1. Era um aceno de alegria em meio a um dia triste. Foi o início de uma nova era no mesmo dia em que outra terminava.
Na qualificação para o GP de Detroit, em 1986, Senna voou baixo para cravar a pole à bordo de sua Lotus com motor turbo francês da Renault. Quando voltou para os boxes, um mecânico segurava uma placa escrito “Brasil 1×0 França”. Senna saltou do carro e foi correndo acompanhar o resto do jogo das quartas de final da Copa do Mundo, uma das mais dramáticas partidas jogadas pela Seleção em todos os tempos, que terminou com uma dolorosa eliminação nos pênaltis. Acabava ali a Era Telê e a geração de Zico, Sócrates, Falcão e Junior.
No dia seguinte, não se sabe se o torcedor brasileiro tinha a intenção de entregar a bandeirinha a Senna, mas ele aproveitou que o piloto desacelarava, após vencer a prova, para correr acompanhando-o, do lado de fora da pista, com uma bandeira brasileira. Senna percebeu, parou a Lotus preta e pediu para o torcedor entrar na pista. Um fiscal se colocou entre os dois, pegou a bandeirinha e entregou a Senna, que ficou esperando o torcedor chegar perto para eles se cumprimentarem, o que fizeram atrapalhadamente.
Senna então acelerou segurando a bandeirinha na mão, inaugurando uma imagem que passou a ser sua marca registrada, uma das mais bonitas celebrações de alegria e felicidade que já se viu com a bandeira do Brasil tremulando. Mais uma vez, o brilho de uma vitória de Senna se acendia logo após outra coisa se apagar.
A parceria entre Senna e a Williams foi saudada como imbatível, mas acabou sendo trágica. O olhar de Senna nos boxes, apoiado no aerofólio do carro, estava mais perdido do que concentrado. Sua feição ao vestir a balaclava, na pole do grid de largada, era de pesar. Seu silêncio no rádio da equipe, durante as voltas com o safety car na pista, pouco antes do desfecho, era o de quem estava em outra dimensão.
Naquele primeiro de maio fatídico, as coisas se alinharam contra ele num encadeamento tão improvável que pareceu a mão do destino conduzindo-o inexoravelmente para imolar-se na perigosa curva Tamburello.
“Senna morreu”, gritou alguém da janela de um prédio. A confirmação da morte cerebral acabava com as esperanças. “Senna não morreu”, rebateu outra pessoa, em outra janela. Apesar do estado irreversível, o coração do tricampeão ainda teimava em bater.
O jornal que chegou pela manhã falava em vitória e recomeço para Senna. A televisão à noite mostrava a sua morte. As duas coisas podiam ser vistas lado a lado, frente a frente, ao mesmo tempo. Aquele primeiro de maio não cabia num dia só.
Dois meses e meio após a morte de Senna, a Seleção foi tetracampeã da Copa do Mundo. Os jogadores, que estiveram com o piloto poucos dias antes de sua morte, num jogo em Paris, abriram uma faixa no gramado em sua homenagem. Dessa vez, um brilho se acendeu no lugar do dele.
Naquele dia em que coisas que não existem aconteceram, duas décadas ininterruptas de vitórias brasileiras na Fórmula 1 foram encerradas da forma mais abrupta possível. Nos anos seguintes, as corridas tiveram novas e emocionantes histórias, com outros personagens, mas elas pareciam vazias porque não faziam mais sentido algum para quem ainda, por reflexo, procurasse um piloto de capacete amarelo na pista.
Naquele primeiro de maio em Ímola e, principalmente, na tevê da casa das pessoas, que era onde realmente aconteciam todas as corridas, uma sensação começou a se perder. Acompanhar, se emocionar e se importar com tudo aquilo foi, por muitos anos, uma forma de ser e de sentir-se brasileiro.