Viajar! Perder países! Penso no poema de Fernando Pessoa enquanto revejo alguns registros dos lugares por onde passei, turista viciada em visitar livrarias, ainda com poucos carimbos no passaporte. Todos os sonhos do mundo, imaginárias bagagens, pesquisa constante de passagens e tickets.
Não lamento o tempo em que as malas estiveram vazias, o tempo em que eu vivia ancorada no cotidiano, atada por laços de afeto que não alcançavam outras imagens, outras margens, movimento, e até mesmo as tediosas revistas nas alfândegas. Nada que não fosse trabalho deslocava minhas âncoras.
Sinto que, embora ainda em construção, essa outra que hoje embarca sem medo em aviões se despediu daquela que temerosamente mantinha os pés firmes no chão. Foi essa moça sem muita coragem que me levou ao aeroporto, atravessando o lendário túnel de bambu do Dois de Julho.
Também foi ela quem me conduziu, outras tantas vezes, às grandes rodovias que interligam as capitais do Brasil, o rosto pálido colado no vidro embaçado das janelas de carros e ônibus interestaduais. Eu a vejo cada vez mais distante pelo retrovisor. Eu a deixo cada vez menor enquanto o avião decola.
O que resta em mim dessa outra é uma miragem distante e quase não temos nada em comum. Se ela sente saudade do que fomos, deixo que chore e grite até que a dor perca seu tônus. Existo em trânsito. “Ser outro constantemente/Por a alma não ter raízes/De viver de ver somente!”.
Mas tenho a impressão de que ver nunca é o suficiente. Como a Lua cheia que míngua numa fotografia feita com smartphone. Como o reflexo da Lua no mar. Algumas belezas só se revelam a olho nu. Camadas densas de representações se interpõem entre o que somos e o que vemos.
Camadas densas de representações se interpõem entre o que somos e o que vivemos. Passageiros sempre a seguir, nem a nós nos pertencemos, como diz o poema de Pessoa: “Viajar assim é viagem/Mas faço-o sem ter de meu/Mais que o sonho da passagem/O resto é só terra e céu”.