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Na volta do São João, forrozeiros tradicionais têm dificuldade para participar de festas

Forrozeiros tradicionais lutam por espaço

A menos de dois meses das festas juninas, Raimundo do Acordeon, 62 anos, esperava estar com a agenda cheia – abril é quando ele costuma ter a programação quase completa. É terça-feira do fim do mês e ele, um dos compositores de ‘Te Esperando na Janela’, acaba de receber mais uma resposta negativa – um município onde ele tocava desde 1987 não irá contratá-lo. 

A busca por contratos começou no fim do ano passado, mas artistas de forró tradicional dizem ter encontrado eventos em que são coadjuvantes de sertanejos, cantores de axé, ex-BBBs e DJs. Diariamente, eles tentam respostas de prefeituras de cidades do interior por mensagens e telefonemas. 

“Eles [gestores públicos] dizem que não têm recursos e quando vemos a grade, têm hiper shows”, diz Raimundinho, que fechou quatro shows, diz Raimundinho

Com a proibição de shows nos dois primeiros anos da pandemia, os artistas foram uma das classes trabalhistas mais atingidas. O São João é a época de ouro para os forrozeiros, que fora do calendário de maio a junho, não têm linearidade de trabalho. Eles aguardavam a festa com ansiedade – seria o fim de uma espera de incerteza e prejuízo. 

OUÇA: De Gonzaga aos Barões: como o forró foi mudando ao longo dos anos

O Governo da Bahia lançou um edital para apoiar prefeituras, mas as inscrições permanecem até dia 3 de maio, o que impossibilita um levantamento dos contratados. A comissão avaliadora que escolherá até 145 projetos, entre os critérios adotados, verificará a presença de manifestações tradicionais juninas.

Nas seis maiores festas privadas da Bahia, o forró (tradicional ou eletrônico) está representado por 34% das atrações, mostra levantamento feito pela reportagem. Em Salvador, uma das contratadas para a festa pública, no Pelourinho, é a ex-BBB Juliette. 

Raimundinho está às vésperas do seu 43º São João e cumpre os requisitos do que se espera de um artista bem-sucedido: sobrevive da arte, tem uma renda baseada em direitos autorais e compôs uma música, com Targino Gondim e Manuca Almeida, que sobrevive aos anos com sucesso – ‘Te esperando na Janela’.

“Sempre teve mistura no São João, não sou contra. O que estamos cobrando é o menosprezo em uma época em que o forró é o protagonista”, afirma o músico. 

Uma das respostas doeu ainda mais nele. Em março, a prefeitura de Petrolina, onde ele se apresentava desde os anos 1980, avisou a ele: “Falta verba para te contratar”. O artista não acreditou: àquela altura, o município pernambucano tinha anunciado atrações como Wesley Safadão, com cachê de R$ 500 mil. “Tentaram me jogar para um São João de bairro, mas nem isso aconteceu”. 

De Juazeiro a Caruaru: a busca por espaço

Juazeiro, onde Raimundinho mora, é uma das oito cidades do Vale do São Francisco. A região é um berço do forró. Conforme junho se avizinha, Targino Gondim, referência no cenário forrozeiro da cidade, recebe cada vez mais mensagens de músicos com pedido de ajuda. Nunca recebeu tantas.

“Muitos estão me mandando mensagens para saber se posso indicar ao governo, às prefeituras, às pessoas que conheço”, lamenta Targino.

Na Bahia, 300 cidades se movimentam para realizar eventos, menores ou maiores, no mês. Por ano, o Governo da Bahia estima que o São João circule R$ 1 bilhão no estado – o que dá ideia do prejuízo dos últimos anos.

Targino em apresentação em Salvador

(Foto: Elói Corrêa/Governo da Bahia)

Em jantares com gestores públicos, Targino dá um jeito de discutir o espaço do forró. “Um sanfoneiro passar fome no São João é triste. O poder público quer colar quem não tem nada a ver? Ok. Mas a protagonista é a sanfona”, completa Targino, que dialoga com forrozeiros de todo o Nordeste, inclusive Caruaru.

Lá, uma das estrelas será Alok, DJ de música eletrônica. A apresentação dele por lá não é novidade. Será a quarta vez que o goiano se apresenta no São João. Artistas pernambucanos têm se manifestado, afinal, a cada 10 bandas que tocarão nos palcos principais, duas são de forró tradicional. 

“Alok é um produto musical como eu. A questão é outra: haver a valorização do artista que faz o São João acontecer, que são os forrozeiros”, diz Sebastian Silva, 32, um dos sanfoneiros de Caruaru, onde as bandeirolas já colorem as ruas.

São João e forró: juntos, mas separados

Daqui a um mês, Campina Grande, na Paraíba, estará pronta para o que é conhecido como o “maior São João do mundo”. Uma das artistas do forró local estará com as malas prontas para fazer o caminho inverso dos visitantes – pegará a estrada para a Bahia, onde pretende tocar em festas públicas.  “Desde os primórdios, ouvimos que santo de casa não faz milagre”, brinca Eloísa Olinto.

“São 30 dias de festa e mesmo assim o forró fica na figuração. Deveria haver uma ponderação do poder público. Não é favor, o forró está como o encostado na festa”, desabafa Eloísa 

A popularização do São João no nordeste brasileiro e do forró caminharam juntos. “O São João ganha uma dimensão maior com a popularização do forró”, explica Ciranília Cardoso, doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, que pesquisa a história do forró. 

As festas de São João, Santo Antônio e São Pedro estão relacionadas a épocas de colheitas e foram trazidas ao país pela colonização portuguesa. No nordeste do país, a população se unia para celebrar, ao som de violeiros e as festas ganharam uma identidade própria, pautada pela diversidade étnica brasileira.

Os ritmos embrionários do forró surgiriam nesse movimento. Nos anos 1950, um rapaz de Exu, em Pernambuco, seria o responsável por popularizar o gênero – Luiz Gonzaga. Em 2021, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) elevou o forró à condição de patrimônio imaterial brasileiro. 

Luiz Gonzaga em Salvador

(Foto: Reprodução/Youtube)

O forró tradicional traz a tríade sanfona, triângulo e zabumba para o centro. A imagem de trios de músicos passaria a representar o gênero. “Luiz Gonzaga criou e recriou narrativas que já existiam na cultura popular. Isso fortalece e muito a presença do forró nas festas juninas”, acrescenta Ciranília Cardoso.

A introdução de instrumentos elétricos no forró, durante os anos noventa, mudaria para sempre o gênero. Bandas como Mastruz com Leite, Calcinha Preta e Aviões do Forró introduzem uma era “mais espetaculosa do São João”, a do forró eletrônico, explica Ciranília, que trazem um novo público forrozeiro. 

O forró tradicional assume o lugar da nostalgia. As bandas passam a ser escolhidas se atraírem maior público. O bolo do São João cresce e artistas de outros gêneros musicais, como o sertanejo, axé e pagode, serão convidados para repartir as fatias. 

Em festas privadas, público escolhe outros gêneros musicais

As festas privadas de São João surgem nesse movimento. Na primeira edição do Forró do Bosque, evento privado em Cruz das Almas, em 2000, as três atrações eram do forró. Foram 2.053 ingressos vendidos. A edição seguinte seria diferente: os organizadores chamaram Chiclete com Banana. As vendas foram três vezes maiores – não podia ser por acaso, o número devia indicar algo. 

O Forró do Bosque se especializou em contratar shows de acordo com o público. Na 22ª edição, as atrações do palco principal serão Léo Santana, Bell Marques e João Gomes, escolhidos pelo público em enquetes.

“Já fizemos bobagem, por exemplo, colocar um DJ para tocar e não deu certo. Mas teve outra vez que colocamos Skank e foi uma polêmica tão grande. No dia, foi lotado”, conta Antônio Dólar, um dos dois organizadores da festa.

Para ele, o público é soberano em determinar as atrações. A festa mantém um palco alternativo para quatro bandas de forró. “Aí você vem na hora de Bell Marques e vê quem estará no galpão para dançar o forrozinho”. 

Bell, que se consagrou como estrela do axé music,  é um dos primeiros artistas baianos desse ritmo a tocar em festas juninas, uma das suas preferidas. Na época do Chiclete com Banana, gravava projetos especiais em forró desde os anos 90.

“Participar do São João é natural para mim. Quem me acompanha sabe do meu carinho [pela época]”, enfatiza.

O repertório de Bell é adaptado para o São João. “Respeito muito nossa cultura. Coloco clássico de outros artistas e adapto músicas minhas, porque sei que também querem ouvir meus sucessos”.

Como aconteceu no Carnaval, o cantor acha natural que o São João e o artista não ‘esteja preso numa bolha musical’. “Ter construído minha carreira com base na força do axé nunca me impediu de trazer elementos do rock, por exemplo”, afirma. 

Ele, inclusive, criou um evento privado, o Forró do Lago, que na edição deste ano terá uma banda de forró – Limão com Mel – entre as seis do palco principal.

Resistência do forró

Sanfoneiro, cantor e compositor, Flávio Baião não tem contratos para junho. Depois dos “anos terríveis”, era hora de amenizar os prejuízos à base de música, mas nenhuma prefeitura retornou às tentativas dele, que decidiu carregar o baião até no nome – é Flávio Mendes da Silva de batismo.

Ao longo dos anos de carreira, Flávio tentou agregar outros gêneros, mas preferiu se manter fiel aos instrumentos clássicos. “Acho que pai e mãe a gente não muda”, brinca. O artista empresaria a si próprio – já tentou, mas não encontrou interessados em vender seus shows. 

Sem presença garantida nos palcos tradicionais, ele criou um local próprio, o Espaço Baião, onde pode, com outros músicos do forró tradicional, fazer shows. 

“Não tinha espaço para tocar e criei o meu próprio. Eu posso estar errado, mas defendo o forró puro, o forró que aprendi e ensino. É um palco protesto”.

Às sextas-feiras e sábados, zabumba, sanfona e triângulo são sempre ouvidos pela vizinhança do bairro de Cajueiro, em Juazeiro, desde 2019. Numa sexta-feira à noite, no fim de abril, Flávio se preparava para um ensaio. Para se apresentar ou ensaiar, veste blusa de botão, calça e chapéu de couro – sempre. 

Lençóis no São João 2019

(Foto: Edilma Brito/Prefeitura de Lençóis)

A 488 quilômetros de Flávio, a cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina, está prestes a ser coberta por bandeirolas. A região é conhecida – e referenciada por músicos – como um local onde as tradições são preservadas, inclusive como estratégia turística. O tema da festa, este ano, será justamente a tradição.

“Vamos trazer muito forró para o Teatro de Arena, um dos nosso pontos turísticos mais famosos e que proporciona uma festa intimista e acolhedora”.  

A Banda Estakazero será uma das atrações – tocará pela primeira vez na Chapada. “Ano de tirar o atraso”, brinca, Léo Estakazero, que está com a agenda de junho lotada. No fim de abril, detalhes de equipe, músicos, técnicos e dançarinos são finalizados para as festas. 

“É o momento de valorizar o forró, mas o gestor quer a praça cheia. O que não se pode é ter um São João que seja só comercial, parecendo festival de música”, afirma Léo.

Quando consegue, Léo indica e convida outros artistas do forró, tradicional e eletrônico, para eventos do grupo. Ele e a banda conciliam o forró tradicional com outras sonoridades. No palco, a presença da zabumba não anula o repertório com músicas de João Gomes. O forró é o molho de tudo, porque ainda é possível, para ele, encher a praça sem transformar o São João em balada. 

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