Jéssica Barbosa não é do tipo que deixa as coisas pra depois. O negócio dela é agir. Dançar, mesmo que seja sob os escombros, e fazer com que histórias individuais consigam se ampliar a ponto de atingir o coletivo propondo reflexão. Revelada ao público nacional atuando no filme Besouro (João Daniel Tikhomiroff/2009), a baiana de Feira de Santana lançou ontem sua primeira peça. A trama de Em Busca de Judith é fruto de uma história de vida pessoal, dolorida, que Jéssica correu atrás de conhecer após o parto de seu primeiro filho e que, agora, é uma ferramenta na luta antimanicomial brasileira.
O espetáculo quer responder a uma pergunta: afinal, o que é a loucura? Para tentar responder, a atriz-dançarina lança o olhar para suas origens negras. A montagem está sendo apresentada em versão online dentro do Palco Virtual Ancestralidades no Youtube do Itaú Cultural e presencial na sede do instituto, em São Paulo, a partir desta quinta.
Até os 32 anos, Jéssica sempre acreditou que a avó paterna, Judith Alves Macedo, havia morrido em acidente de carro na região de Jacobina, de onde vem a família paterna. “Tive meu filho em parto domiciliar: minha mãe veio pra cá, estava ao lado do pai de meu filho na beira de minha cama. Naquele momento, morrendo de dor, eu pensei ‘meu Deus, pra que que eu inventei isso aqui?!’ e achei que não ia conseguir. Tive uma visão de uma roda de mulheres com mães, avós, mulheres que eu não conhecia. Coisa da ‘partolândia’, com o hormônio batendo na cabeça, e essas mulheres falando na minha cabeça ‘a gente conseguiu, você também vai conseguir parir essa criança’”, lembra a atriz.
Foi percebendo a força que as mulheres têm na ancestralidade do mundo que ela se tocou que não sabia nada de sua avó paterna. Mal lembrava o nome dela e isso virou inquietação: “A gente precisa conhecer a nossa história individual e coletiva. Eu preciso contar a meu filho quem foi a minha mãe, quem foi a minha avó, quem é a bisavó dele”, diz. Meses mais tarde, a mãe dela voltou ao Rio de Janeiro, onde Jéssica mora, com um livro de fotografias feito por um historiador de Jacobina, onde está a única foto de sua avó em vida. E aí a história do acidente teve uma reviravolta.
(Foto: Fernando Dias/Divulgação) |
Intenação compulsória
Na realidade, Judith, mulher negra, mãe de cinco filhos, foi internada compulsoriamente por seu marido num hospital psiquiátrico, onde ficou até morrer, em 1958. “Depois que pariu o quinto filho, minha avó, que tinha mais ou menos 28 anos, teve um surto ao ver meu avô com outra mulher. E ele abandonou ela no Juliano Moreira, de Salvador, até ela morrer, com 42 anos. Ela teve a história silenciada até minha geração, até mim, que fui buscar a história dela”, conta.
Quando Jéssica descobriu isso, sentiu que era sua missão descortinar essa história. Afinal, era injusto mais uma jovem mulher preta, mãe de cinco filhos, ter sua voz silenciada de uma maneira tão brutal. “Meu avô nunca se casou com ela no papel. Na verdade, ele a traiu e se casou com uma mulher branca. Desconfiamos que ela enfrentou uma depressão pós-parto, mas não havia esse diagnóstico nos anos 40”, comenta Jéssica.
Essa descoberta, permeada pelo silenciamento das vozes femininas e das questões que atravessam o sistema manicomial, se transformou na matéria-prima do espetáculo Em Busca de Judith. Nele, além de encenar, Jéssica Barbosa divide a idealização e a dramaturgia com Pedro Sá Moraes, que assina ainda a direção musical da peça, que tem trilha interpretada ao vivo por Alysson Bruno (percussão e voz) e Muato (voz, baixo, guitarra e violão).
O desenvolvimento da peça começou em 2018, quando Jéssica e Pedro ingressaram na residência artística do Museu Bispo do Rosário. A dupla pesquisou o universo da saúde mental, a história de Judith e sua interface com a arte durante três anos. Nesse período, trocaram experiências com os artistas residentes do Ateliê Gaia, além de acessar várias pesquisas e contar com apoio da curadora pedagógica do Museu Bispo do Rosário, Diana Kolker. “Para nós, pessoas pretas, nossa história pessoal tem muitas lacunas e é muito difícil de compor. Muitas pessoas pretas não conhecem as histórias de seu avô, sua avó, nunca viram uma foto, têm histórias de um passado colonial e opressor. É como se a gente não tivesse memória. Esse resgate individual é uma ação anticolonial”, pondera a atriz.
Enquanto construía a dramaturgia, a atriz debruçou-se sobre livros como Holocausto brasileiro (2013), da jornalista Daniela Arbex, sobre o Hospital Colônia de Barbacena; e Mulheres e Loucura: Narrativas de Resistência (2020), de Melissa de Oliveira Pereira. Além disso, promoveu debates em seu canal do YouTube com o psicólogo Lucas Veiga, com a psicóloga e doula Luiza Ferreira e com a própria Diana Kolker.
O espetáculo estreia no Mês da Luta Antimanicomial, data que celebra a mudança na forma de lidar com a saúde mental, deslocando os internos dos hospitais para comunidades e residências terapêuticas.
Indicada
Jéssica Barreto foi indicada ao prêmio de melhor atriz no Festival do Rio pelo longa O Pai da Rita – O Filme, de Joel Zito, que estreia em todo o Brasil no próximo dia 19. Na produção, protagonizada e escrita por Wilson Rabelo e Ailton Graça, sobre dois compositores da velha guarda da Vai-Vai. Jéssica interpreta uma passista por quem os amigos se apaixonam.
Na última edição do Festival do Rio, dois baianos saíram premiados: Lázaro Ramos faturou o prêmio de melhor direção com Medida Provisória, e Sergio Laurentino, que ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante pelo trabalho no filme A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky.
Ailton Graça e Wilson Rabelo posam para foto com Jéssica Barreto nos bastidores de ‘O Pai da Rita’ (Foto: Acervo Pessoal) |