Todo mês de maio bate aquela sensação de que o ano dobrou a esquina. De junho em diante, sobe o cheiro de canjica e amendoim e, em dezembro, tudo vira uma profusão de piscas-piscas e panetones de chocolate. Entre o anarriê e as generosidades fugazes do Natal, seguimos rumo a uma incógnita histórica: 2023.
Mas 2022 não tem sido um ano tão ruim, argumentam os gurus da positividade. Parafraseando o título de um livro de Fante, eu penso que sim. Quem sou eu na fila do namastê que habita em mim para desafinar o coro dos contentes? Então façamos assim: vamos mentalizar coletivamente que hoje somos bem melhores.
Não vale olhar para trás, agir como a Mulher de Lot. Devemos ignorar solenemente os crimes cometidos contra o povo Yanomami e todas as barbaridades cotidianas que dilaceram os vulneráveis. É extremamente perigoso para a nossa delicada sensibilidade ir além do levante de hashtags ou da produção de memes.
Sugiro uma solução simbólica e positiva mentalmente. Façamos de conta que somos da tribo dos likoualas, os menores seres humanos do planeta, os trêmulos pigmeus africanos do conto A menor mulher do mundo, de Clarice Lispector, para quem não ter sido devorado, ao fim de cada dia, é a única fonte de satisfação.
Vamos celebrar então o fato de ainda estarmos vivos e termos uma árvore só nossa, mirante de onde é possível contemplar a destruição dos povos da floresta. Sim, vamos festejar efusivamente nossa vitória provisória contra a morte em aglomerações saudáveis. O amor é não ser devorado, diz o conto.
E é claro que esse texto contém ironia. Contém tristeza também. E horror. Sensação incomoda de impotência. Cheiro de sangue. Revolta que mal cabe nos caracteres. Uma pequena esperança que ainda é ninfa. O medo de que a ninfa nunca desabroche em esperança. Mas tentem ler com alguma leveza, recomendo.