Mesmo sem finalizar o primeiro semestre deste ano, a Bahia já registra, em 2022, 407 casos a mais de violência contra crianças e adolescentes do que os seis primeiros meses de 2021, o que representa 16% de aumento. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, até o dia 13 de maio, foram 2.925 denúncias, frente às 2.518 de janeiro a junho do ano passado. Os números fazem o estado ocupar o quarto lugar do ranking das unidades da federação com mais ocorrências.
O Dia de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, 18 de maio, marca a luta pelos direitos humanos desse público e visa fortalecer a rede de proteção, bem como denunciar casos de violência. A data foi escolhida porque em 18 de maio de 1973, em Vitória (ES), um crime chocou o país e ficou conhecido como o Caso Araceli’, em referência a menina de 8 anos que foi raptada, estuprada e morta por jovens de classe média alta daquela cidade. A temática é debatida durante todo o mês pela campanha Maio Laranja.
Antônia [nome fictício para preservar a fonte], 17, é uma vítima. Há dois anos ela está acolhida na Associação das Comunidades Paroquiais de Mata Escura e Calabetão (Acopamec), referência no acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de abusos e exploração sexual na Bahia e também fora do estado. A adolescente chegou à entidade com marcas de violência física, desnutrição e grávida de quase quatro meses.
“Morava com minha companheira e ela me obrigava a me prostituir, me espancava e ainda ficava com o dinheiro dos programas. Com essa vida de prostituição, engravidei de um cliente. Busquei ajuda de uma vizinha e ela me levou ao Conselho Tutelar, que me encaminhou para a Acopamec”, conta a adolescente.
Pandemia
O isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 também impactou a violência contra crianças e adolescentes. Nos 12 meses de 2020, a Bahia registrou 4.477 casos e, em 2021, foram 4.943, o que representou um aumento de 10,4%. A coordenadora do Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual (Serviço Viver), Divonete Santana, diz que, além do aumento de casos, o isolamento fez também aumentar as dores do trauma.
“Foi um período crítico porque muitas vítimas tiveram que ficar em isolamento ao lado de seus algozes, o que agrava ainda mais a dor e as consequências dessa violência. Nessa retomada entre o final de 2021 e início de 2022, chamou a nossa atenção o retorno de pessoas que já tinham passado pelo Viver. Foram pedidos de socorro para retornar ao acompanhamento psicoterapêutico”, diz.
Tribunal de Justiça
O juiz responsável pela 1ª Vara dos Feitos Relativos aos Crimes Contra a Criança e Adolescente, Arnaldo José Lemos de Souza, afirma que a Justiça enfrenta diversos obstáculos quando se trata do combate aos crimes contra crianças e adolescentes.
“Muitas vezes, a família e a própria criança tem receio de denunciar e de dizer o que está acontecendo. A família também tem medo de denunciar por medo de expor, trazer constrangimentos para a criança e também por não acreditar muito nas instituições de proteção”.
Além disso, segundo o juiz, a criança também tem medo de revelar o abuso por não saber o que pode acontecer com a sua família. “É o pai que abusa, o padrasto, e a criança se pega pensando: ‘Será que vão acreditar no que eu vou dizer? Será que minha família vai acabar se eu revelar isso? O que vai acontecer com minha mãe? Eu vou viver com eles? E se minha mãe não acreditar em mim, onde que eu vou parar?’’, detalhou.
Na Justiça, depois de feita a denúncia, a maior dificuldade que se tem é fazer com que essa vítima seja ouvida de uma forma protegida e acolhida por uma pessoa capacitada e que busque o relato livre do que aconteceu realmente com ela. De acordo com o juiz, todas as autoridades devem estar preparadas para quando essa criança ou adolescente revelar o abuso: “Ela precisa ser reservada e acompanhada. Ouvida somente uma vez em depoimento especial”.
“Também existe a pressão da família para que a criança não fale a verdade porque vai prejudicar o abusador, sendo algum parente, e é necessário que essa criança seja acolhida desde o início para que isso não aconteça”, ressaltou.
O fato da Bahia estar em 4° lugar em denúncias pelo Disque 100, segundo o magistrado, é ruim por conta do crescente número de casos. Mas também tem o lado positivo de mostrar que as pessoas estão denunciando. “Em cerca de 90% dos casos o abusador é condenado, sendo que a palavra da vítima é muito importante para que isso aconteça”, destaca.
Arnaldo José também cita que a pandemia encobriu o número de denúncias, mas aumentou os abusos. “Foi um momento em que a vítima precisou conviver com seu abusador e sem a possibilidade de contar o que estava acontecendo, porque elas viviam na mesma casa. Nesses casos, o fato só vai ser revelado quando ela sair daquele ambiente e se sentir segura pra contar o que sofreu”,.
As agressões
Até maio deste ano, foram atendidas pelo Serviço Viver 76 vítimas. Os maiores índices da violência foram acometidos contra crianças e adolescentes entre 12 e 15 anos, do gênero feminino, declarados de cor parda e negra, de baixa renda, sendo os autores da agressão, em sua maioria, de dentro do convívio familiar, como pai e padrasto.
“É um mito dizer que a violência sexual não está dentro de casa. A maioria das vítimas sofrem violência por pessoas que moram na mesma casa que elas ou por outros familiares e pessoas próximas. Muitos agressores usam a proximidade com a família como um disfarce para ficar acima de qualquer suspeita e essa proximidade é um obstáculo, inclusive, para a denúncia, mesmo após eles serem descobertos”, diz Divonete Santana.
A titular da Delegacia de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Dercca), delegada Simone Moutinho, lembra da importância da denúncia. Segundo ela, apenas 10% das violências contra crianças e adolescentes chegam ao conhecimento da polícia. “O maior obstáculo que temos é a cultura do silêncio. […] As denúncias geram serviços de inteligência para localizar o autor do crime. A partir disso, temos as representações por cautela junto ao judiciário, operações e prisões com instalação de inquérito policial e processos. Ao final de tudo, acontece a condenação do agressor”, coloca.
Além de comprometer o acesso das vítimas à saúde, educação, lazer e convivência social e familiar, os abusos e explorações trazem consequências psicológicas que podem durar a vida toda. “De imediato, a vítima pode se isolar, apresentar dificuldades na aprendizagem e desenvolver um sentimento de culpa, por exemplo. Esses traumas podem durar a vida toda se não forem tratados de forma adequada e um grande problema pode ser a dificuldade de se relacionar afetiva e sexualmente”, acrescenta a coordenadora do Serviço Viver.
Para Divonete, é importante que família e escola, dentre outros ambientes de convívio das crianças, estejam preparados para combater essas violências e lidar com elas caso aconteçam.
“A criança deve ter acesso à educação sexual, sendo ensinada sobre as partes do corpo e sobre o que podem e o que não podem fazer com ela. É preciso ter cuidado com o costume de a criança para abraçar e beijar as pessoas; isso não deve ser colocado como uma obrigação para ela. Vale ressaltar que o papel da família é importante, mas, pela violência também vir de dentro de casa, a escola tem papel fundamental”, finaliza.
Exemplos de casos de abuso e exploração infantil noticiados pela mídia
Uma criança de 9 anos foi estuprada por um homem de 58 anos, no município de Carinhanha, no Oeste da Bahia. O caso aconteceu em março deste ano. O agressor foi preso em flagrante pelo crime de estupro de vulnerável após policiais receberem uma denúncia de populares que passavam próximo a um depósito abandonado, local da agressão. “A criança confirmou os abusos e relatou que o indivíduo pagou a quantia de R$ 10”, explicou o titular da DT de Carinhanha, delegado Zanderlan Fernandes.
Em dezembro de 2021, quatro homens envolvidos em crimes de divulgação de imagens e vídeos de exploração sexual de crianças e adolescentes na rede mundial de computadores foram presos, durante a Operação Infância Protegida. As prisões aconteceram nos municípios de Vitória da Conquista, Jequié, Palmeiras e Antônio Gonçalves.
Em 2018, uma criança de 4 anos foi estuprada pelo próprio tio, no bairro da Federação, em Salvador. O crime foi descoberto após a menina se queixar de dores e apresentar sangramento da vagina. A mãe da vítima levou a menina para o Hospital Geral do Estado (HGE), onde foi constatado por uma médica da unidade que a criança tinha sido abusada mais de uma vez.
Dercca realiza campanha pelo Maio Laranja em shoppings de Salvador
Uma equipe de policiais, assistente social e psicóloga da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Dercca) está realizando abordagens educativas em shoppings de Salvador em alusão ao Maio Laranja, mês de mobilização contra o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.
As ações começaram no dia 18 e vão até o dia 20 e têm o objetivo de esclarecer a população sobre a importância do papel da sociedade na prevenção destes crimes. A iniciativa acontece de forma simultânea à Operação Flor de Lótus, que visa a prisão de autores de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. As duas atividades policiais são coordenadas pela titular da Dercca, delegada Simone Moutinho.
“Neste ano, a campanha é intitulada Florescer, com uma cartilha que informa as atividades da Dercca, sobre a exploração sexual infantojuvenil e quais são os meios de notar que uma criança ou adolescente está sendo vítima desse tipo de crime. A ideia é estabelecer um diálogo com os pais e com as crianças, que vão ter acesso à cartilha musicada, de forma mais lúdica”, diz a delegada.
As abordagens educativas acontecem nesta quinta-feira (19), no Shopping Barra, com a apresentação dos artistas, a partir das 16h; e na sexta-feira (20), no Salvador Norte Shopping, a partir das 15h.
Durante as ações, também estão sendo realizadas abordagens psicossociais com a psicóloga e a assistente social da Dercca, quando serão distribuídas cartilhas com orientações sobre o tema. A delegada Simone Moutinho destaca uma das principais orientações.
Tipos de violência
Abuso sexual é o ato praticado pela pessoa que usa uma criança ou um adolescente para satisfazer seu desejo sexual, ou seja, é qualquer jogo ou relação sexual, ou mesmo ação de natureza erótica, destinada a buscar o prazer sexual com uma criança ou adolescente. Como as vítimas não têm condições de discernir corretamente o que está acontecendo, acabam se tornando reféns do seu agressor, tanto psicológica quanto socialmente.
Exploração sexual acontece quando é oferecido algum tipo de benefício ao menor de 18 anos em troca de favores sexuais, tratando a sexualidade da pessoa como mercadoria, independente se há um adulto mediador ou se essa ação é realizada diretamente com o menor. Essa troca pode ser por dinheiro, comida, favores, presentes, um lugar para dormir.
Confira aqui outros tipos de abusos contra crianças e adolescentes e suas punições
Principais indicadores de abuso e exploração: (Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos)
Vítimas de até 4 anos:
- Inflamação, equimoses e fissuras vulvares e anais
- Hemorragia anal e genital
- Corrimento vaginal
- Doenças sexualmente transmissíveis
- Perturbação do sono
- Comportamento ou brincadeiras sexuais
Vítimas de 4 a 6 anos:
- Fissuras e equimoses vulvares e anais
- Hemorragia anal e genital
- Diarreia ou Constipação intestinal
- Limpeza compulsiva
- Acessos de raiva
- Conhecimento sexual inapropriado para a idade: brincadeiras, discurso e desenhos
- Perturbações no sono
Vítimas de 7 a 12 anos:
- Diâmetro aumentado do orifício himenal ou ausência de hímen
- Canal vaginal alargado
- Inflamação, equimoses ou fissuras anal/vaginal
- Doenças sexualmente transmissíveis
- Infecções urinária repetidas
- Diarreias, Enurese e Enxaqueca
- Asma emocional
- Desordens do apetite
- Perturbações no sono
- Fracasso escolar
- Mudanças de humor
- Ansiedade
- Condutas disruptivas
- Vontade excessiva de agradar
- Tentativas de suicídio
- Incorporação de papel maternal
Vítimas de 13 anos ou mais:
- Gravidez
- Doenças sexualmente transmissíveis
- Solicita orientação quanto ao uso de contraceptivos
- Anorexia nervosa
- Ingestão compulsiva de alimentos
- Abuso de drogas/álcool
- Promiscuidade
- Automutilação
- Depressão
- Estados fóbicos e desordens compulsivas
- Incorporação de papel maternal
- Abusa sexualmente de outras crianças
Perfil do agressor: (Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos)
Quando o autor da agressão é pessoa ligada à vítima por laços de consanguinidade ou afinidade. Ex: Pai, mãe, avós, tios, irmãos, padrasto, madrasta, cunhados, etc:
- É muito possessivo e proíbe a criança e/ou adolescente de se relacionar socialmente com amigos;
- São pessoas aparentemente normais;
- Quando possuem relacionamento conjugal, esse é marcado por crises na área da sexualidade;
- Pode abusar de drogas e/ou álcool;
- É geralmente imaturo, egoísta e sem estrutura emocional para construir relacionamentos saudáveis;
- Culpa a vítima de promíscua e sedutora;
- Acredita que o relacionamento sexual com a vítima é forma de amor familiar;
- Quando descoberto, nega sistematicamente o abuso sexual;
- Usa de autoridade, manipulação ou superioridade física para subjugar a vítima
Quando o autor é qualquer pessoa que ocupe um papel significante na vida da criança (adolescente) vindo assim a ganhar a confiança dela e, consequentemente, levar uma vantagem psicoemocional em sua vida. Ex: Amigos, vizinhos, líderes religiosos, médicos, dentistas, professores, etc:
- É muito possessivo e proíbe a criança e/ou adolescente de se relacionar socialmente com amigos;
- São pessoas aparentemente normais;
- Quando possuem relacionamento conjugal, esse é marcado por crises na área da sexualidade;
- Pode abusar de drogas e/ou álcool;
- É geralmente imaturo, egoísta e sem estrutura emocional para construir relacionamentos saudáveis;
- Culpa a vítima de promíscua e sedutora;
- Acredita que o relacionamento sexual com a vítima é forma de amor familiar;
- Quando descoberto, nega sistematicamente o abuso sexual;
- Usa de autoridade, manipulação ou superioridade física para subjugar a vítima.
Como denunciar?
- Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, que funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana
- Disque 190 – Polícia – destinado a atender emergências e urgências policiais
- Disque 181 – Polícia – recebe denúncias sobre qualquer tipo de crime
- Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca) – [email protected] e pelo instagram @cedecaba / (71) 3321-1543
- Os Conselhos Tutelares municipais também podem direcionar os encaminhamentos. São 18 deles em Salvador, nos bairros de Roma, Barroquinha, Brotas, Liberdade, Itapuã, Pernambués, Castelo Branco, Cajazeiras, Periperi, Federação, Boca do Rio, São Caetano, Narandiba, Barra, Ipitanga, Pituba e Valéria, além das ilhas que pertencem ao município. Veja todos os endereços e telefones no final da matéria ou neste link.
Onde encontrar ajuda?
- Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual (Serviço Viver) – Localizado no Instituo Médico Legal (IML), em Salvador
Oferta às vítimas e familiares acolhimento institucional, atendimento médico ambulatorial e acompanhamento psicossocial. O atendimento pode ser buscado através dos contatos (71) 3117-6700 , (71) 99913 -4091 e (71) 98400 5436.
Registro de violência contra crianças e adolescentes na Bahia em 2022:
Janeiro: 357
Fevereiro: 488
Março: 585
Abril: 1.187
Maio: 308 (até o dia 13)
Total: 2.925
Registro de violência contra crianças e adolescentes na Bahia em 2021:
Janeiro: 313
Fevereiro: 393
Março: 426
Abril: 444
Maio: 467
Junho: 475
Julho: 448
Agosto: 444
Setembro: 438
Outubro: 444
Novembro: 377
Dezembro: 274
Total: 4.943
Registro de violência contra crianças e adolescentes na Bahia em 2020:
Janeiro: 416
Fevereiro: 409
Março: 454
Abril: 386
Maio: 439
Junho: 405
Julho: 342
Agosto: 353
Setembro: 375
Outubro: 335
Novembro: 271
Dezembro: 292
Total: 4.477