Tenho uma dívida antiga com passarinhos. Daí essa mania de viver de olho nas aves em todo lugar. A passarada sempre prende a minha atenção, seja voando, cantarolando, mergulhando de raspão na água, ciscando no chão, caçando o de comer nas flores ou em revoadas inesperadas no trânsito. Costumo até conversar com as cambacicas, sempre que elas pousam distraídas na varanda do apartamento.
Alguns pássaros falam mais que muita gente. Notei que as cambacicas sumiram no início da pandemia, só para voltar do susto ainda mais cheias de assunto. Entre as asas e os pés, tem essa conta que não fecha. É que, na infância, andei caçando com badogue no Barro Vermelho, a fazenda do meu tio em Baixa Grande, um dos meus lugares prediletos. Nos currais da memória, tonéis de licuri, banhos de rio.
Badogue é o mesmo que estilingue, arma artesanal feita com pau e tira de borracha. Simples de fabricar: cava a madeira até moldar, isso se uma árvore já não der o arco feito. Amarra a borracha de um lado a outro. Põe uma pedra no meio, estica até cansar e, então, atira para o alto. Se atingida, a ave interrompe o voo e cai morta. Passatempo cruel, desses que confirmam a vocação da humanidade para a violência.
Dia desses, assisti a um vídeo impressionante, gravado por câmeras de segurança em Cuauhtémoc, no México, no qual dezenas de melros de cabeça amarela, uma ave canadense em migração de inverno, despencam em bando no chão. É como se um invisível canhão-atiradeira disparasse para o alto centenas de pedras a esmo . Não se sabe ainda a razão, alguns consideram sinal do fim dos tempos.
Para o poeta português José Gomes Ferreira (1900-1985), os pássaros quando morrem não desabam no chão, antes caem no céu. E isso ele concluiu, numa licença poética espetacular, ao andar em vão toda a manhã “a procurar entre as árvores um cadáver pequenino que desse o sangue às flores e as asas às folhas secas…” e não encontrar, ao menos no poema, vestígio algum de aves mortas na floresta.
Em um planeta no qual a poesia parece secar gradativamente, como um rio que mantém o fluxo vivo apenas nos subterrâneos, são os fios elétricos dos postes e os pesticidas que costumam abater as aves. Isso quando elas não colidem com as hélices das turbinas de aviões ou contra os para-brisas de automóveis. É que os pássaros não foram feitos para os céus do nosso mundo, de luzes artificiais e prédios gigantes.
Dizem que os gregos praticavam a ornitomancia, um tipo de adivinhação oracular que consistia em observar o movimento dos pássaros. A altura dos voos, as cores e as espécies, até mesmo as mudanças de rumo, guardavam mensagens. A sabedoria popular dita que ver um passarinho morto significa que a dor vai acabar. Mas, se um passarinho vivo vier em sua direção, é a felicidade que está a caminho.