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Os perigos do ‘homeschooling’: entenda por que tantos educadores são contrários à proposta

Ao longo deste mês, a ideia do pedagogo Renato Queiroz, 30, era discutir a campanha do Maio Laranja com os alunos do 2º ano na escola em que ensina, no Alto do Cruzeiro. A campanha nacional tem o objetivo de conscientizar, prevenir e combater o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, numa referência à menina Araceli Crespo, estuprada e morta aos oito anos de idade, em 1973, no Espírito Santo. 

Uma das abordagens do professor foi mostrar às crianças, de forma lúdica, como poderiam ficar atentas a sinais de abuso que poderiam estar vivendo. Para isso, ele trouxe o livro infantil Kiko e Mão, que conta a história de Kiko enquanto a Mão ensina quais partes do corpo podem ou não ser tocadas por outras pessoas. 

“No final, a Mão diz a Kiko que existe uma rede de apoio caso alguém queira tocar nele. Nessa rede, estão as pessoas que ele têm confiança. Teve uma criança que se levantou e disse: ‘professor, eu confio em você, por isso quero falar’. Ela me disse depois, em particular, que um primo dela estava querendo tocá-la nos lugares onde não podia”, conta Renato. 

O comportamento da criança vinha chamando a atenção da também pedagoga Darlene Souza, que dá aulas a essa turma duas vezes na semana. No ano anterior, era atenta, meiga e respeitava os combinados da sala. Nos últimos tempos, porém, andava desatenta e constantemente agia com desrespeito ou indisciplina. “O professor acaba conhecendo o comportamento de cada criança”, explica. 

Quando os professores e a escola foram conversar com a mãe da menina, souberam que a família tinha descoberto que se tratava de um adolescente de 13 anos. Mas muitas vezes a família não faz ideia ou o abusador é a própria pessoa responsável pela vítima. “A escola protege a criança, porque a maioria dos abusos acontece no ambiente doméstico, que é o lugar que também deveria protegê-la. Muitas vezes, nós criamos um vínculo com a criança e ela se sente à vontade para contar as histórias que vive dentro de casa, até mesmo as violências”, diz o professor Renato. 

Situações assim são mais comuns do que se imagina. Segundo educadores, pesquisadores e entidades da área, faz parte da rotina da escola proteger também esses direitos dos estudantes. E, na avaliação desse mesmo grupo, essa função seria esvaziada em um contexto de educação domiciliar, o também chamado ‘homeschooling’. A rede de proteção de crianças e adolescentes, portanto, ficaria defasada. 

Essa discussão ganhou força nos últimos dias, depois que a Câmara Federal aprovou o projeto de lei 3.262/19, que descriminaliza a educação domiciliar no país. A proposta, que altera o Código Penal, passou por uma votação “a toque de caixa” e seguiu para o Senado. 

Além do projeto federal, há iniciativas em municípios e estados ao redor do país. A Bahia é justamente um dos quatro estados que têm um projeto de lei em tramitação na Assembleia Legislativa. Proposto em 2019, a última atualização do projeto foi em março de 2021, quando chegou à Comissão de Constituição e Justiça.

Essa movimentação gerou reações. A direção da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia (Ufba) divulgou uma nota contrária ao projeto, assim como representantes de entidades como o Todos Pela Educação e o Itaú Social também se posicionaram.  

“É uma violência à nossa Constituição, à escola como um bem comum e é uma distorção de um conjunto de conservadores que não só têm a intenção de criar ou possibilitar o homeschooling, como querem virar as costas para a educação”, afirma o diretor da Faced, o professor Roberto Sidnei Macedo. “Há que se identificar: de onde surgem essas propostas? De quem são essas propostas? Quais são seus discursos políticos? São as mesmas pessoas que defendem a Escola Sem Partido, ou escola amordaçada”, acrescenta. 

Na nota da Faced, a direção afirma que o projeto é um ataque velado à escola pública, numa tentativa de promover ilhas educacionais. “A escola pública é um bem republicano que não pode ser descartado por projetos socialmente irresponsáveis de qualquer natureza, nem por aventuras autocráticas”, pontuam. 

Crime 
Atualmente, a educação domiciliar pode ser enquadrada como “abandono intelectual”, de acordo com o artigo 246 do Código Penal, como explica o advogado Geovane Peixoto, doutor em Direito e professor da Ufba e da Faculdade Baiana de Direito. Além disso, a Constituição Federal determina que a educação é uma responsabilidade do estado e da família. É a partir disso que o sistema educacional é instituído, separado entre educação básica, fundamental e ensino médio. 

“Não acompanhar a frequência dos filhos à escola faz com que os pais incorram na prática de um crime. Os pais têm, de fato, uma responsabilidade no processo educacional, mas, de acordo com nosso sistema jurídico, com a Constituição e com a Lei de Diretrizes e Bases, isso não dá aos pais o direito de assumir essa responsabilidade sem a frequência e o acompanhamento da escola”, explica Peixoto.

Ou seja: atualmente, famílias que têm essa prática no Brasil podem ser processadas criminalmente. Para completar, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2018 entendeu que os pais não têm o direito de tirar os filhos da escola para educá-los em casa. 

Por isso, como explica o professor da Baiana de Direito e da Ufba, mesmo que o projeto eventualmente descriminalize o homeschooling, a decisão do STF é de que ainda falta regulamentação para esse modelo de educação domiciliar, o que só aconteceria com um segundo projeto. 

O texto aprovado indica quem é que de fato poderá fazer a educação domiciliar, em caso de descriminalização. Um dos requisitos é de que ao menos um dos responsáveis pela criança ou adolescente tenha formação superior mínima para lecionar. Na Bahia, apenas 1 em cada dez pessoas com 25 anos ou mais tinha ensino superior completo em 2019 – ou seja, 11,2% dessa população, segundo o IBGE. O percentual é o terceiro menor do Brasil, que é de 17,4%. Não há dados específicos sobre quantos desses adultos com ensino superior têm filhos matriculados em escolas. 

“Isso atingiria uma parcela ínfima da sociedade. A grande maioria não poderia usar esse sistema. O que estaríamos fazendo, mais uma vez, é uma política nacional na área educacional excludente, que iria separar uma pequena casta de privilegiados que poderiam optar por dizer aos seus filhos o que querem em termos educacionais”, enfatiza o advogado. 

Perfil 
Como não há regulamentação da educação domiciliar no Brasil, não é possível chegar ao perfil das famílias que optam pela modalidade no Brasil, como explica a professora Luciane Barbosa, docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das principais pesquisadoras do homeschooling no país. 

O que se sabe é que trata-se de um movimento heterogêneo e relativamente recente – ao menos, após a Constituição de 1988, quando houve a compreensão majoritária de que a principal via de garantia da educação das crianças é através da escola. Em outros períodos da história do Brasil, como o período do império e nas Constituições de 1934 e 1946, a educação domiciliar era prevista. 

Aos poucos, esses grupos foram se organizando e, em 2010, formaram a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). De acordo com o site da entidade, existem 7.500 famílias praticando o homeschooling no Brasil atualmente, chegando a um total de 15 mil alunos entre 4 e 17 anos. Nenhum representante da entidade foi localizado. 

“Eles vêm lutando pelo direito de praticar o homeschooling”, diz Luciane. “(As famílias) Simplesmente não enviam os filhos para a escola ou retiram os filhos da escola e passam a ensinar em casa. Se não houver nenhuma denúncia de que essa família fez isso, elas continuam fazendo a educação domiciliar”, explica. No entanto, nos últimos anos, começou a aumentar o número de famílias denunciadas a órgãos como o Conselho Tutelar. Desde então, algumas têm sido processadas e a Aned tem trabalhado pela regulamentação. 

Como não há estudos científicos que mostram o perfil das famílias no Brasil e quais são as motivações desse público, um dos grupos que desponta na discussão da educação domiciliar é o dos cristãos conservadores. Na avaliação da professora, esse grupo tem se aproveitado do contexto político após a eleição do presidente Jair Bolsonaro para reivindicar essa regulamentação. 

“É um grupo que acabou ganhando uma maior expressão tanto na mídia quanto na relação com o governo federal. Pesquiso a temática desde 2009 e alguns grupos de famílias progressistas de diferentes motivações acabaram aderindo a esse movimento. Mas o grupo que tem maior expressão é esse cristão conservador”. 

Assim, é possível notar uma aproximação com os argumentos utilizados para defender outros projetos conservadores, como a Escola Sem Partido, a militarização das escolas e as propostas contra a suposta ideologia de gênero. Para a professora, aspectos do projeto que acabou sendo votado também indicam que essas famílias pertencem a uma determinada classe econômica, já que ao menos um dos adultos precisaria estar fora do mercado de trabalho para acompanhar a criança. 

“Nesse sentido, a gente questiona essa transferência de recursos públicos e esforços que vão da escola pública, que atendem a grande maioria, para um grupo. Esse é um aspecto central que coloca educadores contrários à educação domiciliar, justamente pelo processo de luta pela ampliação do acesso à escola no Brasil, pelas camadas mais desfavorecidas economicamente”, acrescenta. 

Riscos 
Entre educadores, é praticamente consenso que a escola é capaz de identificar situações de violência vividas por estudantes em casa. Essa também é a avaliação do diretor-executivo do Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho, que acredita que a prática da educação domiciliar vai reduzir a capacidade de detecção dessas situações. 

“Isso porque os dados evidenciam que a maioria dos casos de abuso ocorrem no domicílio e que a escola é um dos principais canais de identificação ou denúncia”, diz. 

Para Nogueira Filho, também haverá um impacto direto no uso dos recursos públicos e do esforço governamental, depois de quase dois anos de escolas fechadas e ensino remoto, que afetaram principalmente estudantes mais pobres.

“A desigualdade já aumentou e, sem um esforço contundente, seguirá aumentando. A aprovação dessa medida exigirá o direcionamento de recursos  financeiros e de gestão das secretarias de educação para criar estruturas de fiscalização. Exigir isso, nesse momento, é uma aberração”, reforça. 

Segundo a gerente de Pesquisa e Desenvolvimento do Itaú Social, Patricia Mota Guedes, há demandas de educação mais urgentes, como superar as lacunas de aprendizagem enfrentadas nos últimos dois anos de pandemia. “A gente entende que tem outras pautas mais prioritárias no dia a dia dos professores, das escolas e das famílias”, pondera. 

A visão dos especialistas é de que, sozinhas, as famílias não têm condições de atender todas as necessidades do desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. Para Patricia, há competências como argumentação, empatia, cooperação e cidadania que são aprendidas através do diálogo com diferentes pessoas e opiniões, além do confronto de ideias. 

“São aprendizados que vêm da convivência com grupos, pares, pessoas e adultos também de fora da família. A gente sente que há limitações e não há evidências de que o homeschooling traz mais aprendizado e melhor desenvolvimento”. 

Ensino
Outra preocupação é a possibilidade de homeschooling na Educação Infantil. Pelo texto do projeto de lei, as crianças em idade pré-escolar precisam passar pela chamada ‘avaliação anual qualitativa’ – algo que não existe hoje no Brasil. 

De acordo com Olavo Nogueira Filho, do Todos Pela Educação, é um retrocesso diante de um avanço recente, que foi a Emenda Constitucional 59/2009, que determinou que a educação infantil é uma etapa obrigatória para todas as crianças de 4 e 5 anos. 

“O risco é que um número importante de crianças deixe de frequentar a escola durante esta etapa, e perca acesso a atividades fundamentais para o desenvolvimento que são organizadas de forma sistemática nas escolas, com a mediação de professores formados para isso”, reforça. 

A formação também preocupa o professor Roberto Sidnei Macedo, diretor da Faculdade de Educação da Ufba. “A família é parte da ampliação do processo educacional, mas a escola se prepara e os professores estudam anos e anos para serem educadores. O professor faz o caminho para qualificar de forma ampla as nossas crianças, sem reivindicar um nicho, uma ilha desvinculada de uma escola conectada com o mundo”. 

Pandemia 
O principal mote da educação familiar é a liberdade das famílias. Ou seja: as famílias escolheriam a forma como as crianças vão aprender, quais seriam os melhores momentos de aula, que atividades extras vão fazer e por aí vai.

É diferente do ensino remoto, que ocorreu na pandemia, embora há quem faça confusão com as duas coisas. No ensino remoto, houve uma transposição da aula para casa, orientada por profissionais da área. Os professores é que davam aula, enquanto a escola ou a secretaria de educação definia horários de aula, o currículo e o método. 

“O que pode ser debatido é se essa experiência das famílias estarem mais próximas despertou interesse em algumas pela educação domiciliar, mas isso é algo que a gente ainda não tem e é importante diferenciar os dois conceitos”, afirma a professora Luciane Barbosa, da Unicamp.

As consequências desse período, inclusive, ainda estão sendo sentidas e avaliadas por especialistas, como destaca a psicopedagoga Maria Angélica Rocha, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia (Seção Bahia). 

Ela reforça que não basta afirmar que o ensino domiciliar é bem-sucedido em outros países. De acordo com defensores dessa estratégia, o homeschooling é permitido em cerca de 60 países. 

“É importante se pensar sobre a sensatez de copiar modelos de outros países, porque a realidade brasileira tem peculiaridades, inclusive sobre a sua história”, pondera.

Segundo ela, é preciso ter responsabilidade para compreender o processo de aprendizagem, que vai além dos conteúdos. “Falam sobre o modelo de Portugal, que teria uma relação próxima até pela língua, mas é bem diferente do Brasil. Lá, foi adotado, mas não foi implantado de uma hora para a outra. Foram estabelecidos critérios para a execução e as famílias seguem esses critérios”, completa. 

‘Alunos do ensino doméstico português se comunicam mais do que os que vão à escola’, diz pesquisador português

Um dos modelos de educação domiciliar mais lembrados pelos defensores da prática é o de Portugal. Lá chamado de ensino doméstico, é considerado bem-sucedido pelo pesquisador Alvaro Ribeiro, doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Minho e estudioso do tema desde 2008. 

De acordo com ele, o resultado frequente dos alunos portugueses que estudam em casa é de ter notas altas nos exames de avaliação regular. A média das notas seria maior do que a das escolas públicas. 

“Também isso é facilitado porque, numa escola, temos uma professora para 30 alunos ou mais. Aqui, você tem uma pessoa por aluno, às vezes dois alunos”, explica. 

Além disso, ele rechaça a ideia de que esses estudantes teriam problemas de socialização, que seriam fechados em seu próprio mundo ou até mesmo que se relacionariam apenas com pessoas adultas. 

“O que vi desde 2008 é que alunos do ensino doméstico se comunicam com mais pessoas, de diferentes estratos, diferentes públicos, do que os alunos que frequentam a escola. Conheço casos de alunos que agora são adultos e são perfeitamente integrados. Eles conseguem alcançar níveis de emprego em que ganham mais do que muitos alunos que frequentam a escola pública”, argumenta.

Em Portugal, é possível identificar perfis das famílias que optam pelo homeschooling. Em dois ‘extremos’ citados pelo professor, há os religiosos, de um lado; os que defendem o ‘unschooling’, de outro. 

No primeiro caso, são famílias conservadoras religiosas – católicas, evangélicas, luteranas, adventistas e algumas calvinistas. “Elas dizem: ‘quem é que educou o filho de Deus? Então, nós fazemos igual. Como Maria educou o filho e o filho não andou em escolas, muito menos escolas públicas, queremos fazer a mesma coisa”, explica Ribeiro. 

São famílias que recorrem a um autor brasileiro, o escritor Augusto Cury, que tem um livro intitulado ‘Maria, a maior educadora da história’, publicado em 2007. Apesar de seguirem o currículo e as normas determinadas pelo Estado português, essas famílias ensinam certos temas considerados delicados por elas de forma diferente. Quando falam sobre a origem da humanidade, por exemplo, dizem que foi Deus quem criou o homem, embora existam pessoas que digam outras coisas. 

Já as que defendem o ‘unschooling’ acreditam na desescolarização e pretendem eliminar tudo que lembra a escola. Parte dessas famílias têm filosofias de vida consideradas mais naturais por elas, como o veganismo. 

Só que, ao contrário da Constituição brasileira, a Constituição portuguesa tem um entendimento diferente sobre as responsabilidades dos entes na educação. “A nossa Constituição diz que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. O estado deve proteger a família e cooperar com os pais para a educação dos filhos. A Constituição portuguesa não abre portas para que haja conflitos entre os pais, as escolas e o estado”, explica. 

Ainda que seja difícil obter dados sobre o número de famílias que seguem o ensino doméstico, segundo o professor, o homeschooling não chega a 2% da população portuguesa em idade escolar. Em geral, são as mães as principais gestoras da educação domiciliar em Portugal. 

“Elas fazem isso e fazem muito bem. É um tipo de mãe que dedica-se a estudar continuamente. Elas dedicam-se a aprender, ao longo da vida, métodos, conteúdos, técnicas e competências para educar corretamente seus filhos”, acrescenta, citando cursos de curta duração. 

Na avaliação do pesquisador, nas escolas, quase não há aprendizado pela descoberta. Já no ensino doméstico, essa seria a principal via, ainda que a aprendizagem pela transmissão exista. 

Ainda assim, há falhas identificadas por ele no contexto português. “Vi casos em que as mães não tinham competência nem capacidade para ensinar aos filhos e é quando entra a competência do estado. O estado tem que exigir que as pessoas que se responsabilizam pela educação domiciliar dos seus filhos tenham graus acadêmicos acima do assunto que vão ensinar”. 

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