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O novo sempre vem

Para Luiz Felipe, Belchior é um “cantor que transmite um pensamento bom para a alma, que toca seu coração através de músicas que contam histórias, dão significados à vida e fazem qualquer pessoa ter esperança”. Dizeres dele. Felipe poderia facilmente ser um fã que vivenciou a obra do artista em plena ditadura nos anos 70 e está apenas rememorando a obra do cantor que nos deixou em 2017. Não é. Luiz tem apenas 9 anos e nem era nascido quando Belchior parou o país com seu sumiço, em 2009. Contudo, ele é mais um entre os jovens que estão redescobrindo um dos maiores compositores da MPB. A juventude está cantando Belchior. 

A pandemia ajudou nesta relação entre o menino e o cantor cearense. Em 2020, durante o isolamento em casa,  o pai sempre fazia faxina ouvindo o artista. “Me chamou muita atenção. Perguntei quem era. Passei a escutar no celular, pesquisar sobre ele, ver vídeos dele no Youtube.  Assim, foi surgindo o amor pelo Belchior. Quando chego da escola ou depois dos estudos, coloco Belchior. Ele parece conversar comigo”, disse Luiz Felipe, que já segue alguns passos do ídolo. “Sou desenhista que nem ele. Desenho muitas coisas, incluindo o rosto dele. Também quero fazer medicina, como ele fez, mas largou. Para Belchior, a música falava mais forte no coração”, completa Felipe, que também tem seu lado criança.  “Também gosto de desenhar animes. Adoro Dragon Ball”, diz. 

Luiz Felipe não é o único. No início do mês, o pequeno Artur de Mari, de 11 anos, cantou Apenas um Rapaz Latino Americano no The Voice Kids e viu as cadeiras viradas para ele. “Amar e mudar as coisas me interessa mais. Viva Belchior”, disse o garoto, que é deficiente visual.

Talvez o segredo deste ressurgimento do cantor esteja justamente no encaixe perfeito entre suas letras e a juventude.  A música Sujeito de Sorte se tornou uma espécie de hino para este momento de turbulência social. Somente no Spotify, a música já foi executada mais de 22 milhões de vezes, a mais tocada do cantor. O trecho “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”  está estampado em camisas e postagens nas redes sociais. Ainda segundo a plataforma, são 794.553 mil ouvintes mensais que acessam a obra de Belchior.

Em 2019, Emicida lançou AmarElo, single em que ele, Majur e Pabllo Vittar cantam  o refrão de Sujeito de Sorte. Na canção ainda tem um emocionante depoimento de um jovem parente de Emicida  sobre depressão, medo e a obrigação de demonstrar felicidade o tempo todo, um sério problema nesta era das redes sociais. Casou perfeitamente. É como diz o rapper paulista: “Belchior tinha razão”. Este resgate trazido por novos  artistas  é um dos fatores para o interesse dos jovens.

Gabriela Vitória é fã de Belchior e decidiu homenagear o cantor na pele. Onde vai, leva o artista

“Acho que o fato dos artistas estarem resgatando as obras dele, fazendo menções e usando frases  nas músicas contribui muito para a propagação da letra dele. Muitos jovens conheceram através desta conexão, né?”, diz a estudante Vitória Gabriela,  18. Ela conhecia a obra de Belchior através das vozes de outros artistas, como Elis Regina, até ouvir A Palo Seco na voz do cara. Foi quando começou sua admiração pelo artista, principalmente pelo engajamento de suas letras na  atualidade, seja falando de amor ou de problemáticas sociais. 

“No cenário atual em que estamos, está todo mundo meio ‘perdido’, pedindo ajuda em silêncio. Letras  como Sujeito de Sorte ou  Monólogo das Grandezas do Brasil, em que canta “está faltando emprego, neste meu lugar, eu não tenho sossego, eu quero trabalhar, já pensei até em passar a fronteira”, fica claro o quanto a genialidade dele é imensa! É justamente o que minha geração precisa ouvir e entender”, explica Vitória, que marcou na pele sua admiração por Belchior com o rosto dele tatuado no braço. 

“O que mais me fascina é a capacidade  dele de traduzir nossa alma e nosso sentimento, que nem sempre  conseguimos descrever, mas ele consegue perfeitamente nas letras. Por ser fã, quis eternizar minha admiração na pele, pelo menos enquanto minha existência durar”, diz.

Tributo 

A única maneira de sentir o termômetro entre Belchior e os mais jovens, pelo menos aqui em Salvador, é indo para rua, mais especificamente em dois lugares: na Saladearte do Museu, na Vitória, e o Bistrô das Artes, no Santo Antônio. O cantor e compositor Dórea faz um tributo a Belchior nestes dois lugares e ambos lotam de fãs cada vez mais jovens cantando em coro e pedindo canções que até o próprio Dórea desconhece. 

Para ele, não se trata de uma febre entre os novinhos, mas de uma descoberta mesmo: “É uma questão que sempre falo nos shows. O público acabou se renovando porque  outros artistas trouxeram as obras de Belchior de volta. Belchior teve muito sucesso nos anos 70, talvez nos 80, mas depois ficou meio apagado. No início dos anos 2000, Los Hemanos gravou  A Palo Seco e era a banda no momento, né? Trouxe um frescor para o público daquela época, que hoje tem 36 ou 37 anos como eu”, lembra Dórea, que teve a sorte de ver Belchior ao vivo. “Fui a três shows dele, graças à gravação dos Los Hermanos. Num desses shows, conversei com o próprio Belchior e ele mesmo reconheceu a importância dos artistas mais jovens naquele retorno dele aos palcos”, lembra. 

Dorea faz tributo a Belchior e assegura que seu público jovem cresce todos os dias

“Nos meus shows tem coroa, da minha idade, e tem este público muito jovem também. Alguns rostos que eu vejo chego a duvidar se tem 18 anos mesmo”, brinca Dórea. “Também tem outros aspectos. Lembro da época de Temer, onde dizeres ‘Fora Temer, volta Belchior’ estavam em  camisetas. Este lance comercial também chamou atenção dos jovens. Porém, acho que o senso crítico de Belchior chama mais atenção. Ele sempre fala sobre a juventude”, completa, lembrando que a música preferida do seu público  é justamente a que Emicida sampleou, Sujeito de Sorte. “O curioso é que esta música nem era o maior sucesso dele, como Alucinação ou Como Nossos Pais, por exemplo”, pontua. 

Mas, letras críticas e apoio de artistas jovens não são os únicos aspectos que trazem Belchior de volta à vida. Sua trajetória pessoal também fascina e  ainda causa curiosidade. Em 2009, o programa Fantástico exibiu uma reportagem especial sobre o desaparecimento do cantor, que largou casa, carro no aeroporto e não falava com familiares e empresários há dois anos. Ele foi encontrado no Uruguai e o caso repercutiu em todo mundo e virou livro. Claro, dá para ver toda história no Youtube também. 

Chris Fuscaldo sabe bem como a vida pessoal de Belchior também influencia neste interesse da turma mais jovem. Junto com Marcelo Bortoloti, ela escreveu o livro Viver é Melhor que Sonhar – Os Últimos Caminhos de Belchior, onde refizeram todo caminho do artista nesse autoexílio.  

“Toda vez que revisito o livro ainda me surpreendo, reflito, mudo um pouco de opinião e entendo melhor alguma coisa. É para ser lido e relido, sem dúvida. Me surpreendo com a atitude de Belchior de abandonar isso tudo. Mas, de alguma forma, ele sabia que estes fatos o tornariam um mito”, disse a escritora. 

“É muito bom a velha geração dando valor e passando para seus filhos. Tem muitos artistas que estão ganhando este novo interesse, como Renato Russo, Raul Seixas, Cazuza e o próprio Belchior. Só lamento que boa parte só entra neste interesse após a morte”, completa Chris. 

Os jovens concordam com a escritora. “Além das letras, todo o mistério que envolve o personagem também cativa. Li um livro sobre a parte final de sua vida, quando ele  se picou, largou tudo e foi morar no Uruguai, devendo a meio mundo de gente. Não que eu concorde, mas foi uma espécie de grito  que muitas pessoas precisam e querem dar também. Um ato de coragem”, avalia  a estudante de comunicação, Ana Pinchemel, 21. Ela também registrou sua admiração por Belchior na pele, tatuando sua música preferida.

a música Coração Selvagem é a preferida de Ana Pinchemel. Está na pele

“Coração Selvagem é bonita, envolvente, densa e fala de uma forma bonita sobre amor e liberdade. Podemos encaixar letras de suas músicas nesta vivência difícil no governo Bolsonaro e nas relações históricas da ditadura. Tudo isso faz Belchior voltar à vida, pois ele sempre está em algum lugar da atualidade”, garante Ana. 

A história de Belchior se mistura à de milhares de brasileiros comuns, cujo sofrimento existencial é traduzido em suas músicas. Antônio Carlos Gomes Belchior nasceu em Sobral, no Ceará, e foi tentar a sorte em São Paulo, como muitos outros nordestinos. Traduziu sua inquietação na música, tentou fugir da loucura da vida moderna e morreu sem o reconhecimento que merecia. Mas, talvez, ele nem quisesse isso.

“Sou um operário da música, mas minha felicidade pessoal independe da minha realização profissional. Não quero ser realizado, quero estar realizando. Quero apenas um encontro diário com as pessoas”, disse Belchior, num show no antigo Projeto Pelourinho Dia e Noite, em 1998. Pelo visto, este encontro com a juventude não acabará tão cedo. E mostra que nossos ídolos ainda são os mesmos, afinal.

Principais álbuns de Belchior

Belchior (1974) 
O disco tem grandes sucessos, como A Palo Seco

Alucinação (1976)   
A principal obra do artista. É nele que tem o sucesso preferido da nova geração, Sujeito de Sorte

Coração Selvagem (1977)   
O nome já diz a principal música

Saiba mais sobre Belchior

Viver é melhor que sonhar – Os últimos caminhos de Belchior
O livro recria trajetória do cantor e compositor cearense e busca compreender as motivações que o fizeram viver seus últimos dez anos em autoexílio
Preço: R$ 47,40
Autores: Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti

Belchior: Apenas um rapaz latino-americano
Biografia do artista nascido em Sobral, com discografia e fotos
Preço: R$ 34,83
Autor: Jotabê Medeiros

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