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Qual é o tamanho do buraco onde estamos? Vídeos de cursos para policiais provocam debate sobre formação

Diante de um quadro branco cheio de anotações, o professor dá sua aula, transmitida online para alunos de todo canto do país. Para uma câmera, em um certo momento, na transmissão para os alunos, porém, os ensinamentos da área de Direito para concursos dão lugar a declarações chocantes. 

“O capitão chegou e falou: ‘que p*rra é essa?’. Eu falei: ‘p*rra, o cara jogou xixi em mim, capitão’. O cara falou: ‘quem foi?’, eu falei: ‘não sei, tá todo mundo sem dente, feio, camisa do Flamengo, olhando o radinho, sei lá. Foi ali’. O capitão reuniu todo mundo e falou: ‘foi mais ou menos onde?’. Falei ‘ali’. ‘Ó, fatia daqui, ali. Bate em todo mundo’. Foi o primeiro ato de execução de maldade e crueldade que eu fiz, cara. P*ta que pariu. Vai se f*der, que delícia. Ali eu descobri que eu gosto de bater nas pessoas. E ponto”.

O vídeo com as falas do professor Evandro Bittencourt Guedes, sócio da AlfaCon Concursos Públicos, veio à tona nos últimos dias, mas é só uma parte de um contexto maior. Desde a morte de Genivaldo Santos de Jesus, em Sergipe, após ter sido colocado em uma ‘câmara de gás’ nos fundos de uma viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), trechos de aulas em cursos preparatórios para a polícia viralizaram nas redes sociais e provocaram indignação. 

A maioria dos vídeos são de professores com alguma relação com a polícia – alguns, como Guedes, que é ex-PM, já não fazem mais parte dela; outros, como o professor Ronaldo Bandeira, ainda estão nos quadros. O caso de Bandeira é simbólico: agente da PRF e dono de um curso que leva seu nome, ele foi um dos primeiros a ter um trecho de sua aula exposto na internet, ainda na semana passada. 

Nas imagens, é possível ver o policial e professor narrando uma situação em que prendeu uma pessoa na viatura.

Ele ainda tentou quebrar o vidro da viatura com chute. Ficou batendo o tempo todo. O que o polícia faz (sic)? Abre um pouquinho, pega spray de pimenta e taca”, diz, aos risos, enquanto faz gestos como se soltasse a substância dentro do veículo. “F*da-se, é bom para c*ralho. A pessoa fica mansinha. Daqui a pouco só escutei: ‘eu vou morrer, eu vou morrer’. Aí eu fiquei com pena. Abri assim… Tortura! E fechei de novo”, acrescenta. 

As falas causaram ainda mais revolta porque o método descrito por ele foi apontado por especialistas como sendo o mesmo que levou à morte de Genivaldo: fechar alguém em uma viatura com bomba de gás lacrimogêneo. Em meio à polêmica sobre os preparatórios para concursos de polícia, os próprios cursos de formação dos aprovados – ofertados pelas corporações aos recém-chegados – também têm sido questionados. 

No meio de tudo isso, uma revelação: ainda este ano, a PRF retirou a disciplina de Direitos Humanos do curso de formação dos agentes. Por isso, na última segunda-feira (30), o Ministério Público Federal (MPF) em Goiás recomendou ao diretor-geral da corporação que restabeleça as comissões de Direitos Humanos, assim como o ensino da matéria.

Qualquer servidor que for flagrado numa falta disciplinar deve frequentar imediatamente o curso, que deve contar com professores que sejam representantes do movimentos negro, dos povos de terreiro, lideranças da população LGBTQIA+ e do combate à violência de gênero. 

“A presença da disciplina de Direitos Humanos como disciplina autônoma a ser ministrada nos cursos de formação e reciclagem dessa instituição é necessária para incutir no policiais rodoviários federais as competências mínimas para o exercício qualificado de relevante função social voltada à defesa e à promoção de direitos no estado democrático de Direito”, dizem os procuradores Mariane Guimarães Oliveira e Marcello Santiago Wolff, no documento. 

Frequência 
Não é difícil encontrar estudantes concurseiros que tenham presenciado algum tipo de declaração como desses professores em aulas de cursinho, já que os mais famosos têm modalidades online. O biólogo Emerson Sant’Anna, 32 anos, concurseiro que se dedica desde 2021 a estudar para provas da polícia científica (os peritos criminais), chegou a se matricular no curso da Alfacon, mas decidiu não renovar a assinatura por conta dos comentários de alguns professores e pelo posicionamento político da empresa. 

Em geral, o Alfacon é associado a professores bolsonaristas. Foi neste curso, inclusive, que Eduardo Bolsonaro aparece dizendo, em uma aula, que bastaria um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018. 

“Tem um vídeo atual do dono, no Youtube, falando sobre esses casos da PRF. Até que ele foi técnico, mas, no geral, os comentários dele são horríveis”, diz Emerson, apesar de ponderar que a maioria dos docentes não fazia comentários do tipo. “Mas tem aulas com palavras homofóbicas, gordofóbicas, machistas”, lista. 

Hoje, Emerson estuda com aulas de outro curso e diz que nunca presenciou declarações do tipo nas aulas. Ainda assim, afirma que não ficou surpreso quando viu os vídeos que circulavam. O biólogo conta que ficou decepcionado e indignado com a ação da PRF no caso de Genivaldo. Segundo ele, outros concurseiros do seu grupo de amigos também receberam a notícia com o mesmo sentimento por não acreditar em uma polícia que usa a violência como método. 

“Esse tipo de abordagem truculenta não é típico da PRF, muito menos da PF (Polícia Federal) e da Civil. Não posso afirmar se o que os três agentes fizeram foi em algum momento abordado na UniPRF, mas creio que não seja uma técnica usada pela Polícia Rodoviária Federal”, diz, citando o órgão que centraliza o treinamento e a capacitação dos agentes. 

Nos concursos para a PRF, as questões sobre direitos humanos ainda são cobradas normalmente. Por isso, a notícia de que os créditos foram removidos do curso de formação também foi vista com estranheza. “Não faz sentido. Precisamos de uma polícia humanizada e que traga de fato a sensação de segurança para a população”, acrescenta. 

Em guerra
De acordo com o coordenador nacional do Movimento de Policiais Antifascismo, Denilson Neves, que é investigador da Polícia Civil da Bahia, esse tipo de abordagem discursiva é comum no país, especialmente na Polícia Militar. Ela estaria ligada ao estímulo à chamada ‘ética do guerreiro’ ou ‘ethos do guerreiro’. Por essa lógica, um policial está sempre em guerra contra um determinado público. 

“Ser guerreiro é ir para o combate, para o enfrentamento. E você não combate coisas inanimadas. Você em guerra tem que eleger um exército  opositor. Para a segurança pública brasileira, esse exército é um determinado segmento social”, diz, citando pessoas pobres, negras e que sofrem algum tipo de opressão. 

Os próprios cursinhos preparatórios para o concurso são uma espécie de ritual de passagem do guerreiro. Há exceções, claro: segundo Neves, tanto no dia a dia das polícias quanto no ingresso, existem pessoas que querem fazer uma transformação e têm um discurso humanizador. Esse número, porém, ainda é pequeno proporcionalmente. 

O coordenador do movimento reforça que, em geral, a maioria das pessoas que entra nas polícias tem boas intenções. Elas buscam, inclusive, uma carreira estável, com um salário garantido, ainda que defasado em algumas categorias.

“Quando a pessoa chega dentro da polícia, vai assistir à sua destruição enquanto ser humano. As polícias do Brasil colocam você na condição primitiva da espécie. Você escuta que é ‘vagabundo, que ninguém gosta de você’, para criar um ódio interno que passa para o seu labor no dia a dia. Você descontrola o policial primeiro porque, para desumanizar, precisa de pessoas desumanizadas”. 

Além disso, é difícil haver uma fiscalização do que é ensinado nesses preparatórios para concurso, como pondera a coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Juliana Martins. Para ela, o material que vazou dessas aulas é um exemplo de tudo que não deve ser o objetivo em nenhuma polícia. “E influencia, de forma muito negativa, os candidatos e candidatas a policiais, que já vão entrar com uma ideia totalmente equivocada do que é ser policial”, explica. 

De acordo com o sociólogo Antônio Mateus Soares, professor do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), os cursos preparatórios devem ter especificações de metodologias, recursos didáticos e materiais, além de uma trajetória formativa. É crucial para a qualidade dessas aulas, segundo ele, que os professores apresentem currículo e experiência formativa. No entanto, a falta de fiscalização daria brechas até a apologias a estratégias de execução. 

“Geralmente, a administração desses cursos para concurso policial é realizada por profissionais que já estão no quadro efetivo da segurança pública. Alguns têm pouco conhecimento pedagógico e sem preocupação didático metodológica. Há casos que os exemplos dados em sala referenciam métodos de tortura, com alusão a performances sanguinárias de filmes de terror impressionista”, diz Soares, que coordena grupos de estudo e pesquisa sobre o tema. 

Universidades
Aprender sobre direitos humanos é algo considerado fundamental por especialistas para a carreira policial. Isso vale para qualquer corporação, em qualquer país, uma vez que os policiais são alguns dos agentes que vão promover e garantir esses direitos humanos, de acordo com a coordenadora institucional do FBSP, Juliana Martins.

O problema é que, hoje, em muitos desses cursos oferecidos pela polícia, a disciplina fica restrita ao campo jurídico. Ou seja: explica-se apenas o que está escrito na lei. “Mas como isso se relaciona com a prática policial? O que isso tem a ver comigo? Seria importante tratar de direitos humanos na prática e desconstruir a ideia de que ‘direitos humanos’ são contra os policiais, muito pelo contrário”, pontua, citando a Matriz Curricular Nacional para profissional de segurança pública. 

Esse documento teórico-metodológico foi criado em 2003 pelo governo federal justamente para servir de referência na formação dos policiais. Pelo texto, construído em parceria com professores das academias de polícia e atualizado em pelo menos outras duas ocasiões, os direitos humanos eram colocados como tema transversal em todas as disciplinas, até as operacionais. “Portanto, a gente já possui bons exemplos de como incluir essa temática na formação inicial e continuada desses profissionais”, acrescenta Juliana. 

Segundo o sociólogo Antônio Mateus Soares, professor da UFRB, nas academias de polícia, a formação tem princípios rígidos, regulamentados pela União ou pelo Estado. As matrizes curriculares teriam temáticas apropriadas, conceitos contextualizados e técnicas. Em geral, tudo é ministrado por policiais, mas também por pesquisadores colaboradores. Entre os temas principais, estão Estado e legislação, inteligência operacional, estratégias de ação, mas também postura disciplinar, responsabilidade civil, justiça social, sociologia e psicologia social. 

O sociólogo Antônio Mateus Soares, professor da UFRB, explica que a formação nas academias de polícia segue princípios regulamentados pela União ou pelo Estado

(Foto: Acervo pessoal)

“Como outras instituições do Estado de Direito, nas academias de polícia é comum que alguns integrantes se deixem capturar por vícios e distorções comportamentais que ganham forças na prática profissional futura. Tais comportamentos desviantes expõem a vida do cidadão, a representação e a legitimidade da própria polícia e o Estado de Direito”, analisa.

A reportagem entrou em contato com a assessoria do AlfaCon por e-mail, mas não teve retorno. Nenhum representante do curso de Ronaldo Bandeira foi localizado. As assessorias das Polícias Militar, Civil, Federal e Rodoviária Federal foram procuradas, mas não emitiram posicionamento. 

Formação ‘ideal’ deve vir com valorização profissional

Uma vez dentro de uma corporação, é difícil apontar qual seria a formação ideal para policiais. Essa é a avaliação da coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Juliana Martins. Para ela, o debate sobre a formação deve vir obrigatoriamente com uma discussão sobre a valorização profissional. 

“Porque senão a gente vai ensinar direitos humanos em sala de aula, mas um policial que não é valorizado nunca vai saber o que são direitos humanos na prática. E por valorização eu me refiro a plano de cargos, salários, regimento disciplinar compatível com os direitos humanos, políticas institucionais de educação, reconhecimento e valorização”, enfatiza.

Para o coordenador nacional do Movimento de Policiais Antifascismo, Denilson Neves, é preciso mudar a estrutura também dentro da polícia e também promover ações como a instalação de câmeras nas fardas de policiais. 

“O policial dá para a sociedade aquilo que ele aprende dentro da polícia. São poucos os que trazem isso de casa. A própria polícia faz o policial assim. Quando o policial aperta o dedo de alguém, quem está batendo é o governador, o delegado de polícia. Todos têm responsabilidade. O problema não está no policial em si”, diz. 

Na avaliação dele, a segurança pública não é apenas algo referente à polícia, mas algo multidisciplinar que envolve saúde, emprego, creches, esportes e urbanização. “O assunto precisa ser compartilhado e debatido por toda a sociedade. Hoje, fica restrito aos coronéis de polícia, aos delegados, secretários”, argumenta. 

Para o professor Antônio Mateus Soares, da UFRB, o que tem assustado os brasileiros hoje é o crescimento de ações como a que resultou na morte de Genivaldo. A situação revelaria uma falência do Estado de Direito, já que os agentes representam o Estado. Daí a necessidade urgente de refletir sobre a formação policial. 

“No assassinato do homem negro cometido pelo policial, é importante refletir que talvez outros condicionantes graves estejam associados ao crime cometido: índole perversa, personalidade truculenta, sensação de impunidade e precedentes de ações desviantes. Isso não minimiza os efeitos drásticos do crime e não isenta o Estado da responsabilidade pela conduta desviante de seu agente”, diz.

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