Amor à Flor da Pele (2000), filme de Wong Kar-Wai (divulgação) |
Não consegui me concentrar na leitura. O universo de Stefan Zweig, no qual imergia, me soava distante e opaco, talvez pelo fato de minha mente estar inquieta como um mar revolto, longe do estado ideal de abstração e alheamento que nos permite apreender o que está escrito. Agora estou na varanda, nesta noite silenciosa de terça-feira, acompanhado de uma taça de pinot e de Pudim, meu pequeno filho peludo, que dormita na cadeira ao lado.
Escuto um álbum de Erik Satie e me transporto para um mundo antigo. Aquele conjunto etéreo de Gymnopédies, Gnossiennes e Sarabandes me comove a cada audição, como se cada nota de piano fosse um convite a ligeiros saltos no tempo. Percebo como foi importante interromper a leitura para me permitir o prazer sensorial da música e do vinho, produzindo um hiato de calmaria e candura.
E curiosamente volto a pensar em Zweig, que viu seu mundo desmoronar não uma, mas duas vezes, a segunda de forma definitiva. Um humanista e antibelicista que viveu o ocaso da razão e o despertar do bestialismo. Um grande homem de letras, que conheceu outros grandes homens de letras, com quem compartilhou suas impressões, indagações e temores, como nós, reles mortais, fazemos hoje em relação ao nosso tempo também sombrio. Suas memórias em O Mundo de Ontem me lembram as que Elias Canetti compartilhou em Uma Luz em Meu Ouvido, ambientado em período semelhante.
Zweig perdeu seu país, seu continente, sua morada, suas cartas, seus livros, seus amigos. Assistiu à ruína da sua essência, à derrocada do tempo em que viveu. Não há desterro mais terrível do que ver-se apartado de quem se foi. Ninguém sai imune de uma guerra, quanto mais de duas. Logo as mais brutais, as mais devastadoras. Destituído da identidade europeia, veio parar no Brasil, onde deu cabo da própria vida, ao lado da esposa.
Suas reflexões são forjadas em desencanto e perplexidade:
“Aos poucos fomos acostumados a viver sem chão sob nossos pés, sem direitos, sem liberdade, sem segurança. Há muito já renunciamos à religião dos nossos pais, à sua crença numa ascensão rápida e constante da humanidade. A nós, que ganhamos experiência com a crueldade, aquele otimismo açodado parece banal ante uma catástrofe que nos fez retroceder mil anos de um só golpe em nossos esforços humanos.”
Zweig prossegue:
“No entanto, ainda que tenha sido apenas uma ilusão à qual serviam os nossos pais, foi uma ilusão maravilhosa e nobre, mais humana e fértil do que as atuais palavras de ordem. E, misteriosamente, algo dentro de mim não consegue se libertar daquilo, apesar de todo o conhecimento e de toda a decepção. Aquilo que uma pessoa, durante sua infância, absorveu da atmosfera de sua época não pode ser simplesmente descartado.”
No som, Satie se recolhe por uns minutos e o Spotify, que parece ter vida própria, reproduz Yumeji’s Theme, do compositor japonês Shigeru Umebayashi. É o tema de Amor à Flor da Pele, o lindo filme de Wong Kar-Wai. Paro de pensar em Zweig e no aniquilamento da humanidade e me deixo levar pela melodia. Como é possível tamanha beleza? Como é possível que sejamos capazes de atingir o cume e ao mesmo tempo o fundo do poço?
Lembro de quando assisti pela primeira vez ao longa de Kar-Wai, num festival de cinema em Brasília. E de como senti um prazer quase sensorial, como se pudesse absorver os aromas da comida, o cheiro de fumaça e de chuva, o perfume que emanava do corpo de Maggie Cheung. Até mesmo o desalento do personagem de Tony Leung, por saber que vivia um amor fadado ao fracasso, me era palpável.
A noite avança. Termino a última taça do pinot e me preparo para ir dormir levando Pudim comigo. Levo também a valorosa sensação de ter empreendido uma breve jornada no tempo e no espaço, em pouco mais de uma hora de música e contemplação silenciosa. Amanhã a rotina voltará, os dias de trabalho vão se suceder e provavelmente vou esquecer deste fugaz momento de enlevo. Mas ele permanecerá de alguma forma. Nem que seja em forma de crônica.