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Desprotegidas: saiba o que está por trás da queda dos índices de vacinação das crianças

Os números são para assustar. Até maio, praticamente na metade do ano, a cobertura das vacinas obrigatórias para crianças na Bahia ficou em torno de 19%. Só que a situação não apenas é grave ao analisar o presente; se comparado à situação de oito, sete anos atrás, ela ganha contornos ainda mais dramáticos. 

Isso porque até 2014 e 2015, o Brasil ainda ostentava níveis invejáveis de imunização infantil. Até ali, o país era exemplo internacional, com índices vacinais que chegavam a 95% da população alvo. Agora, os números estão invertidos, enquanto pediatras, sanitaristas e pesquisadores em geral seguem desesperados. 

O que aconteceu nesses últimos anos que justificaria uma queda tão acentuada? A tendência nacional só se confirma em estados e municípios. Na Bahia, onde 90,55% das crianças estavam vacinadas em 2014, os índices começaram a decair em 2016. Em Salvador, a situação fez com que tanto as campanhas para vacinação contra o sarampo quanto a contra a gripe (cujo reforço é anual) fossem prorrogadas na cidade. 

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o objetivo é alcançar a meta de 90% da população alvo para gripe e 95% para o sarampo até a próxima quarta-feira (22). No entanto, até o início do mês, apenas 16% das crianças tinham se vacinado contra a influenza, além de 15% que tinham recebido a dose contra o sarampo. 

“O Brasil sempre teve 90% de cobertura para essas vacinas, no mínimo. Hoje, o país está na mira da OMS (Organização Mundial da Saúde) como um dos países com risco de retorno da pólio. O sentimento é que a gente teve um retrocesso de quase 30 anos. Tínhamos campanhas de vacinação diretas, claras, com investimento massivo. Isso deixou de ser feito”, afirma o pediatra Eduardo Jorge Fonseca, doutor em Saúde Materno-Infantil e membro do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). 

Se a tendência não for revertida, especialistas preveem surtos de doenças que já tinham sido controladas no passado. O sarampo, por exemplo, chegou a ser considerado controlado no Brasil em 2016 pela OMS, mas voltou a aparecer dois anos depois. A taxa de transmissão é muito maior do que a da covid-19: enquanto o Sars-cov-2 preocupava quando tinha índices acima de 1, o sarampo pode ter uma taxa que varia entre 12 e 18. Ou seja, cada infectado pode transmitir o vírus para 12 a 18 pessoas. 

“Uma criança infectada com o sarampo transmite de forma muito rápida, porque a gente fala da importância de uma cobertura acima de 95%. Em um momento em que a gente tem uma cobertura de 67% para a segunda dose da vacina tríplice viral, a gente perde a proteção de rebanho”, completa Fonseca, referindo-se ao imunizante que, de inclui, de uma só vez, o sarampo, a caxumba e a rubéola. 

Outro retorno iminente é o da poliomielite. No mês passado, a Fiocruz emitiu um alerta para o risco de volta da doença no país. O mais curioso é que a vacina contra a pólio, que pode provocar a paralisia infantil, é uma das mais conhecidas do país: a da gotinha, que deu origem ao personagem Zé Gotinha. “Sempre fui uma pessoa esperançosa, mas hoje, estou preocupado de verdade. É muito provável que o Brasil venha a ter casos de pólio se a gente não fizer um esforço coletivo”, reforça o pediatra. 

Desconhecimento
Uma das primeiras razões apontadas pelos especialistas para essa diminuição é justamente o fato de que o Programa Nacional de Imunização (PNI) foi bem-sucedido durante décadas. “Isso passou para os pais a percepção de que, como não se vê mais crianças doentes, não precisa mais vacinar. Alguns pais nem mesmo conhecem essas doenças, não viram casos e não sabem a gravidade delas”, aponta o pediatra, alergologista e imunologista Celso Sant’Anna, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). De fato, o último caso de poliomielite registrado no Brasil, por exemplo, é de 1989. 

Mas, além desses aspectos gerais, há situações mais específicas. Elas ocorrem em menor escala, só que, ainda assim, têm impacto no final. Entre 2017 e 2018, por exemplo, houve uma falta de alguns imunobiológicos devido à própria indústria. No entanto, isso provocou situações de desabastecimento. 

“É preciso cuidar para não haver falta de vacina nas salas de vacinação. Não dá para uma mãe ir até a sala de vacina e, quando chegar lá, a vacina ter acabado porque isso, principalmente nas camadas mais desfavorecidas, significa não só perda de um dia de trabalho como o custo do transporte”, enfatiza a epidemiologista Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia Ufba. 

Desde o ano passado, ela coordena um estudo encomendado e financiado pelo Ministério da Saúde para investigar e entender os motivos da queda da cobertura vacinal no Brasil. Ela é responsável por conduzir a pesquisa em cinco capitais, incluindo Salvador e São Paulo, além de Vitória da Conquista, no Centro-sul baiano. Os resultados finais devem ser divulgados no início do segundo semestre. 

Portas fechadas
O funcionamento das salas vacinais também é um dos obstáculos. Mesmo em capitais, as unidades básicas de saúde atendem apenas em horário administrativo, fechando às 17h e com pausas para almoço. 

Em geral, não existe funcionamento aos finais de semana. “Isso acaba sendo difícil para os pais que precisam trabalhar. Antes, havia muito mais campanhas aos finais de semana e isso auxiliava muito”, diz a infectologista pediátrica Anne Galastri, especialista em vacinas e membro da diretoria da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape). 

“Além disso, algumas focaram na vacinação para a covid e não faziam outras coisas. Acaba sendo difícil às vezes para um pai saber qual unidade está fazendo qual vacina cada dia”, acrescenta. 

Existe até nome para isso: ‘oportunidades perdidas’ de vacinação. Elas também acontecem quando, por exemplo, a criança é levada ao posto de saúde para vacinar e, naquele dia, poderia atualizar a carteira com mais de dois imunobiológicos mas, por algum motivo, o profissional ou a família decidem fazer no máximo duas aplicações. “Se você deixar para depois, muitos pais não voltam”, alerta o pediatra e imunologista Celso Sant’anna. 

Inversão
Enquanto as vacinas de crianças caem, as dos adultos têm mantido índices estáveis. Essa foi uma das conclusões de uma pesquisa conduzida pelo por pesquisadores do 
Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia). 

Os cientistas identificaram que a oferta de imunizantes passou de 11 tipos, em 1994, para 36, em 2019. Mesmo assim, há queda nos últimos anos em 16 vacinas – entre elas, as sete destinadas exclusivamente ao público infantil tiveram redução em todo o país. 

Já as de varicela e meningocócica, por outro lado, aumentaram o número de aplicações. Isso significa que, mesmo antes da pandemia, já havia um movimento antivacina em crescimento no país. 

“O grupo antivax é bastante militante, principalmente na parte pediátrica, falando que algumas vacinas vão ter efeito nas crianças, causando autismo. E as crianças normalmente não respondem por si mesmas, elas não conseguem simplesmente decidir se vão tomar a vacina ou não”, pondera o pesquisador Kiyoshi Fukutani, pós-doutorando do Instituto Gonçalo Moniz e um dos líderes do estudo. 

Na pesquisa, foram identificadas até mesmo alterações na distribuição de vacinas. Até 2012, havia uma aplicação sazonal que tinha picos entre maio e agosto. Nos últimos anos, porém, isso teria mudado para um padrão aleatório de imunização, algo que os pesquisadores consideram que dificulta até mesmo análises sobre o comportamento dos imunobiológicos. 

“O que a gente viu é que, em determinado ponto, o Brasil quebra o padrão. A gente conseguia, através dos números, fazer uma previsão da população que seria vacinada, mas as campanhas saíram do padrão. E, quando saem,a gente perde a previsibilidade de vacinar o povo, ou seja, não consegue fazer mais políticas públicas”, explica. 

Campanhas
Na pandemia, o efeito da desinformação tem sido considerado ainda mais devastador. Com as fake news e questionamentos em torno das vacinas contra a covid-19, grupos têm aproveitado para fazer o mesmo com todas as outras vacinas. 

“É muito mais barato vacinar do que tratar a doença. O Brasil, há décadas, tem uma postura muito medicamentosa. O que ocorre é que você tem um investimento muito grande nessa parte terapêutica, mas o investimento em informação com campanhas é muito mais barato do que simplesmente custear os tratamentos”, completa Fukutani. 

Entre todos os especialistas ouvidos pela reportagem, há um consenso: as campanhas de divulgação, tão comuns até menos de uma década atrás, foram brutalmente reduzidas. Se a ausência do Zé Gotinha rendeu memes na campanha da imunização contra a covid-19, ela também estaria contribuindo para crianças em todo o país estarem com o calendário vacinal em atraso. 

“O governo fazia muita campanha, utilizava personagens icônicos, como o Zé Gotinha, mas também contratava personalidades como Ronaldinho (Fenômeno) e Xuxa. Havia uma preocupação de que a notícia da vacina e da campanha chegasse a um público que se sensibilizasse”, lembra o pediatra Eduardo Jorge Fonseca, da SBP. 

A divulgação e a transparência seriam formas de evitar a chamada hesitação vacinal, um problema conhecido nas campanhas de imunização ao redor do mundo. “Com a falta de confiança nas vacinas, de uma linguagem clara e de um governo que defenda a vacina, que dê o exemplo, as pessoas acabam perdendo a confiança nelas e deixando para lá”, acrescenta. 

A avaliação da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) também é de que o problema das vacinas é multicausal. Em nota, o órgão ressaltou que, tem havido grande esforço das equipes estadual, nível central e regionais, em conjunto com os municípios, mesmo no contexto da pandemia. 

Durante todo esse período, a orientação para o funcionamento pleno dos serviços de vacinação teria sido mantida, com adequações necessárias para cumprir as diretrizes preventivas na estruturação da oferta do serviço. No entanto, nem mesmo essas iniciativas foram suficientes para alavancar o desempenho da cobertura vacinal no estado. 

“A coexistência desses fatores acentuou-se com a emergência em saúde pública, decorrente da pandemia da Covid-19, o que requer a conjunção de esforços entre as três esferas de gestão e interníveis de governo, de modo a organizar a resposta, no território nacional, estadual e municipal, com mais eficiência e eficácia para melhoria dos indicadores de resultados de imunização”, afirma  Sesab, que destacou que a operacionalização das ações de imunização é de responsabilidade das prefeituras. 

Privado
Na rede particular, a baixa cobertura também tem sido uma realidade. Os estabelecimentos privados oferecem os mesmos imunizantes disponíveis no Programa Nacional de Imunização. No Sabin, a procura por vacinas pediátricas caiu pela metade entre janeiro e abril de 2022 em comparação com o mesmo período de 2020. 

Nos estabelecimentos privados, não há tanta restrição aos horários de atendimento, por exemplo. De segunda a sexta-feira, há funcionamento nos horários de almoço, assim como aos sábados. Ainda assim, a queda foi drástica. Os serviços incluem até mesmo consultoria de cartão, para entender como está a situação vacinal de cada usuário, mas a redução é geral.

“Quando a gente fala em possíveis motivos, um dos mais importantes é a perda da percepção do risco na população. Quando essas doenças eram visíveis, se tinha uma preocupação em vacinar. Hoje, muitas vezes as pessoas não percebem a importância da vacinação”, analisa a enfermeira Leila Brito, responsável pelo serviço de imunização do Sabin.

***

Percentual de vacinas contra a covid-19 também é motivo de observação
Informações conflitantes provocaram estragos desde o início da pandemia da covid-19, segundo estudiosos sobre fake news e desinformação. Assim, a cobertura vacinal contra o coronavírus em crianças foi uma das mais afetadas pelas mentiras sobre os imunizantes. 

Hoje, apenas 36% das crianças baianas com idades entre 5 e 11 têm o esquema vacinal completo. Ao menos 64,9% receberam pelo menos uma dose. Assim, os casos de crianças com covid-19 continuam sendo motivo de alerta. Na última sexta-feira (17), a ocupação da UTI pediátrica chegava a 74%, contra 20% da UTI adulto. 

Além das fake news, porém, como destaca o pediatra e imunologista Celso Sant’Anna, o acesso da população aos serviços de saúde também acabou sendo um problema no auge da pandemia.

“A dificuldade de acesso da população é diretamente proporcional aos níveis econômicos”, explica. 

Com a campanha de imunização contra a covid-19, muitas unidades registravam filas todos os dias, ao longo do ano passado. “A gente recomenda que elas não fiquem na fila. As mães estão receosas e com razão. Eu atendi uma criança com 10 meses que ficou uma hora para vacinar e pegou covid. Foi para a UTI e quase morreu”, conta o médico. 

Por isso, a recomendação de muitos pediatras é escolher com atenção a unidade básica de saúde onde as crianças serão levadas, até porque elas estão mais vulneráveis. O ideal é buscar dias sem muita aglomeração. “Não pode ficar com recém-nascido numa fila de vacinação, por exemplo. Já não podia antes, agora menos ainda. A mãe entra, vacina e sai”.

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