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Casa da Infância aposta na liberdade e integração com as famílias para formar cidadãos

Sapatos na porta. Crianças. Colmeia com abelhas a voar. Rosas do deserto a brotar lá fora. Calopsita. Cheiro de comida de vó. Arte. Caos criativo. Desenhos espalhados. Mãe-anfitriã. Brincadeiras. Não fossem a fachada e o movimento de pais e alunos chegando e saindo, a escola Casa da Infância poderia ser confundida com um lar, que é onde existem acolhimento e afeto. E não deixa de ser. “Não se pode falar de educação sem falar de amor”, ensinou Paulo Freire (1921-1997). 

A instituição foge dos métodos tradicionais de ensino, ao defender uma educação humanizada, baseada na abordagem Reggio Emília, que considera a subjetividade de cada aluno e visa formar cidadãos, não apenas portadores de diplomas. Primeiro, as crianças podem chegar no horário entre 7h e 8h30 da manhã (os pais também agradecem!). Segundo: não tem cantina; eles se alimentam do que é feito na escola e ajudam a preparar o alimento. Terceiro: não existem provas e nem tarefas de casa; o aprendizado se dá através de brincadeiras e oficinas artísticas (música, instrumentos, fotografia, culinária, capoeira, idiomas, educação ambiental, entre outras), criadas por educadores que se encarregam de construir contextos que propiciem um ambiente experimental e de exploração.

 “A gente faz um movimento completamente contrário à sociedade. Muitos pais buscam escolas competitivas, que prometem formar líderes, patrões, grandes empresários. Nós queremos formar pessoas autênticas”, afirma Marília Dourado, 56 anos, diretora da Casa da Infância, que recebe crianças na faixa-etária de 06 meses a 11 anos (ensinos infantil ao fundamental).  

Nascida no município de Campo Formoso, Norte da Bahia, Marília sabe do que está falando. Ainda pequena, veio com os pais e os irmãos para Salvador, onde passaram a morar no colégio Dois de Julho. Mesmo com o pai sendo um dos responsáveis pela escola, a educadora confessa que não foi uma boa aluna. Pelo menos, não aos olhos do ensino convencional. “Tive que dar meus pulos para encontrar meu lugar no mundo, e encontrei justamente com a educação. Sempre fui muito questionadora: por que estudar o que não me interessava e por que algumas questões que me interessavam muito, eu não podia aprofundar?”, relembra. 

O que parecia uma contradição – escola conservadora e senso questionador – serviu de impulso para ela ir em busca de uma formação libertadora, bem ao modo Paulo Freire, que, inclusive, chegou a conhecer. Durante seu processo de formação, Marília foi à cidade italiana de Reggio Emília. Lá surgiu a abordagem pedagógica de mesmo nome, após a Segunda Guerra Mundial, quando as mães viúvas procuravam um lugar mais acolhedor para criar seus filhos. O fundador foi o professor e pedagogo Loris Malaguzzi (1920-1994). 

Instituição foge dos métodos tradicionais de ensino

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Voz e vez

As vozes, com palavras e frases ainda em formação, ecoam na casa ampla localizada no bairro do Caminho das Árvores. E se tornam ainda mais potentes durante a Assembleia Geral, realizada sempre às sextas-feiras. “Muitas pessoas estão pintando as paredes. Quase não tem mais espaço pra nada”, denuncia Malu. “Minha sugestão é colocar folhas de papel para cobrir as paredes”, recomenda Pedro. 

Um grupo de crianças maiores apresenta o manual, produzido por elas, para o uso da caneta 3D, de forma que todas possam usufruir do objeto tecnológico corretamente: “Passo 1: Ligue na tomada da parede. Passo 2: Agora pressione neste botão. Passo 3: Espere um dos botões da caneta ficar verde… Passo 8: Aí, é só se divertir!!!!!!” (assim mesmo, com muitas exclamações!). 

Em espaços como esses se dá o exercício da cidadania, desde muito cedo. “É importante escutar, estar presente e em uma relação de respeito com as crianças. Sinto que, na Assembleia Geral, elas percebem que a voz tem toda uma potência, que elas falam coisas incríveis e que suas ideias têm valor, sentido e podem transformar o mundo onde vivem”, ressalta Cândida Sheldon, coordenadora pedagógica, responsável pela mediação dos encontros. 

Cândida também é uma das responsáveis pelo Humanize-se (@projetohumanizesse), projeto de alimentação solidária voltado para pessoas em situação de rua. A ideia veio a partir de um Plano de Trabalho aplicado com os alunos, e ganhou a atenção especial de Maria Luiza Dourado da Costa, de 10 anos. “A gente leu textos sobre a fome, sobre as pessoas em situação de rua (aprendemos que eles não são moradores das ruas), e aí eu me comprometi em fazer um cartaz falando sobre isso pra colar na escola. O cartaz chamou atenção, e eu, minha mãe e Cândida começamos o Humanize-se. Eu já tinha visto pessoas no sinal, pedindo dinheiro, comida, e tinha vezes que eu chorava, me imaginava naquela situação”, explica Malu, como é conhecida. 

Ana Cecília Pereira Guimarães, de 9 anos, é uma das parceiras de Malu na empreitada solidária. “Toda sexta tem mobilização pra fazer comida e distribuição. Já fomos entregar quentinhas às duas horas da manhã. Com os adultos, é claro”, ressalta. A iniciativa, que agora conta com o apoio de outras crianças, pais e educadores, distribui mais de 100 quentinhas, todas as sextas, na Sete Portas, Aquidabã, Barroquinha e Politeama. A comida é feita na casa de famílias voluntárias e os alunos ajudam na distribuição. 

As crianças seguem regras na escola, mesmo que ela seja diferente do padrão tradicional

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Integração: pais, filhos e educadores

A construção dessas relações faz parte dos fundamentos da abordagem Reggio Emília. Também coordenadora pedagógica da Casa da Infância, Daniele Meyer explica que uma educação respeitosa exige trocas permanentes entre crianças, educadores e familiares: “Viver em grupo é um exercício diário de aprendizagem que exige abertura, empatia e capacidade de lidar com as adversidades da vida. Essas são habilidades que vão sendo construídas por adultos e crianças em uma comunidade educativa participativa”. 

Foi Marcele Moreira, mãe de Ana Cecília, quem, no primeiro momento, me recebeu na Casa da Infância. Ela me conduziu por entre seus ambientes, com a desenvoltura de quem pertence ao lugar. Pudera: a historiadora foi uma das primeiras pessoas a acreditar naquele processo educacional inovador, quando foi implantado, há nove anos, mesma idade de Ana Cecília. 

Na escola da filha, Marcele aprendeu a maternar. “Estar aqui me transformou completamente, foi onde eu pude entender os desafios que a maternidade trouxe. Pude me dedicar muito a estar com minha filha, ser presença efetiva no seu desenvolvimento. A escola inova ao convocar a família para fazer parte. Se a família não estiver presente, não funciona”, acredita. Ela também destaca a importância de a instituição ter educadores e colaboradores negros, como ela e sua filha, uma forma de se reconhecerem num espaço majoritalmente branco, o das escolas particulares.   

Pai de Manuel, de 3 anos, e Emília, de 1, Juan Torres é visto com frequência nos corredores da Casa da Infância. Apesar de menos tempo do que Marcele na comunidade escolar (ele matriculou os filhos no início no ano), o jornalista está tão integrado ao ambiente que passa o dia lá mesmo. “Como a escola é longe da minha casa e eu trabalho remotamente, deixo as crianças com os educadores e subo para uma sala que eles disponibilizam, e que está aberta a qualquer pai. Isso me permite acompanhar de muito perto a rotina da escola, além de desenvolver intimidade com o local, com toda a equipe de educadores e também com todas as crianças, de todos os grupos”, afirma.

“Mãe, vou ficar no mato, viu?”, pede Cauã, de seis anos. De origem indígena, o pequeno já sacou que a natureza é um laboratório de experimentações. Recém-chegado à Casa da Infância, ele e a família – da reserva Tha-fene, em Lauro de Freitas – promoveram uma mini-revolução, com seus saberes ancestrais. Especialista em Saúde Pública, Madjowane, a mãe, conduz encontros de integração, troca de saberes, conhecimentos e práticas entre pais, alunos e educadores. 

“Trazemos nossas realidades, ouvimos as outras realidades, fazemos vivências, promoção da saúde dos trabalhadores e das crianças; e apresentamos a medicina indígena, as ervas, em específico, como forma de prevenção de doenças”, explica ela. “Tem também a colméia e o bebedouro que foi construído para os passarinhos durante oficina”. As atividades acontecem na Praça dos Eucaliptos, em frente à escola. 

Sensibilidade e criatividade desenvolvidas

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Regras inegociáveis
Não possuir métodos convencionais de ensino não significa que as crianças não precisem seguir regras. Ao contrário. Algumas são inegociáveis e todos têm que cumprir, para garantir o bem-estar. Por exemplo, não se corre dentro da escola (só fora), porque podem se bater e gerar transtornos (e galos!); só pode entrar no banheiro um aluno por vez, uma forma de reafirmar a importância da privacidade e o respeito ao corpo; também não é permitido agressão nem moral e nem física. 

A partir de cinco anos, se isso ocorrer, eles registram o que aconteceu, na linguagem que quiserem: pode ser por escrito, música, desenho. Quando termina o registro, os educadores pereguntam se precisam deles para mediar a resolução do conflito ou se já podem conversar e encontrar uma solução entre eles. Caso os alunos digam que precisam, os pais participam, no dia seguinte, da mesa de resolução de conflitos.

Os aparelhos eletrônicos são permitidos (embora, eu não tenha visto nenhum aluno com celular), mas com ressalvas. “Começamos a construir um processo de consciência digital. Não é fácil, mas acredito que estamos no caminho certo”, conta Marília Dourado. 

Como a Casa da Infância tem uma proposta pedagógica embasada no Marco do Ensinar para Compreensão, as avaliações são realizadas de forma diferente. Todas as crianças recebem nota máxima desde que chegam na escola e devem mantê-la, com a ajuda dos educadores e das famílias. “O papel da gente é assegurar esse desempenho e esse processo de aprendizagem. Acredita-se que uma avaliação diagnóstica e contínua não está apenas baseado em erros e acertos, em aprovação ou reprovação. Porque o resultado não revela o desempenho, o nível de cada um”, avisa Marília. 

Aqui, é imperativo recorrer,  mais uma vez, a Paulo Freire, o patrono da educação brasileira: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”.

ENTREVISTA: Ana Marcilio*

A escola extrapola o conhecimento formal

Como a educação na primeira infância impacta na formação do indivíduo adulto?
Costumo dizer que na primeira infância a criança percorre o caminho da humanidade. O que significa isso em termos de desenvolvimento? Que entre zero e seis anos de idade, desenvolve habilidades, comportamentos, atitudes que diferenciam os seres humanos de outros animais. É, também na primeira infância, que vamos desenvolvendo o uso simbólico da linguagem, seja por meio da fala, do desenho ou da escrita. Compreender a grandeza desse momento comparando-o com o desenvolvimento da humanidade, ajuda a dimensionar a importância desta fase. É na primeira infância que o potencial humano está em seu ápice.

Qual a importância da ludicidade para o desenvolvimento infantil?
Prefiro me referir à importância da brincadeira para criança, ao invés da ludicidade, tendo em vista que brincar é uma atividade essencial nos anos iniciais da vida, assim como é, também, um direito reconhecido internacionalmente, por meio da Declaração Universal dos Direitos das Crianças e garantido na legislação brasileira por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por meio das brincadeiras aprendemos a nos relacionar conosco, com os nossos pares, com o ambiente em que vivemos, aprendemos habilidades que vão nos permitir viver em sociedade, buscar nosso sustento, conformar com as normas culturais e sociais. A brincadeira é a forma como a criança pensa, interage, comunica, aprende e ensina.

Quais os estímulos a serem aplicados no dia a dia das crianças, na escola?
 É importante que a escola se coloque no lugar de facilitadora da aprendizagem.  Deve investir na qualidade de seus espaços, na presença e convivência com a natureza, em espaços que permitam experiências genuínas de aprendizagem e, para a criança pequena, tudo é aprendizagem.

De que forma a escola deve contribuir na formação do indivíduo?
A escola é um espaço de convivência social, de convívio com o outro, ou melhor, os outros. Ela extrapola e muito os muros que lhes colocamos, as fronteiras que estabelecemos, o espaço de construção do conhecimento formal. É um espaço relacional, um lugar social, de socialização, de encontros e convivências, esse é o maior sentido da escola

*Ana Marcilio é psicóloga, mestre em Educação e Justiça Social e consultora da Avante – Educação e Mobilização Social.

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