O assunto que dominou as redes sociais no final de semana envolve a atriz Klara Castanho, de 21 anos, que teve sua gestação revelada publicamente por Antonia Fontenelle em postagem nas suas redes sociais e, posteriormente, pelo jornalista Leo Dias em sua coluna. Após o pronunciamento dela, na noite de sábado (25), a decisão de entregar a criança para adoção continuou dominando os debates. Isso porque Klara revelou, em uma carta aberta publicada em seu perfil no Instagram, que a gravidez foi fruto de um estupro. “Eu não tinha (e não tenho) condições emocionais de dar para essa criança o amor, o cuidado e tudo que ela merece ter”, escreveu. Por isso, ela optou pela entrega direta para adoção.
A decisão da atriz gerou inúmeros julgamentos: alguns consideraram crime ou abandono de incapaz, outros classificaram como uma atitude corajosa. Mas, o que é a entrega legal ou voluntária para adoção? O CORREIO falou com três advogadas que explicaram como funciona o recurso jurídico e o que ele significa.
A entrega legal e voluntária para a adoção foi instituída por uma lei que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 2017, como explica a advogada feminista que atua com Direito das Famílias, Mariana Regis. “Essa lei alterou o ECA, o artigo 19 A, e introduziu alguns dispositivos”, aponta. No artigo em questão, está disposto que “a gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude”. Com isso, a entrega legal ou voluntária é um mecanismo jurídico que assegura o direito da gestante ou da mãe de entregar a criança para adoção.
“Esse é um instituto jurídico que visa resguardar justamente a vida, a integridade física e psicológica de uma criança. Evita que ela seja abandonada, isso sim é crime, e evita que a criança seja entregue irregularmente, o que muitos chamam de ‘adoção à brasileira’”, acrescenta Mariana. Sendo assim, não há crime nenhum em fazer a entrega de uma criança para a adoção, desde que seja feita de maneira regular.
E como fazer de maneira regular? Manifestando esse desejo e buscando os órgãos competentes para iniciar o processo jurídico. Segundo Mariana Regis, a decisão pode ser tomada antes mesmo do nascimento da criança e pode ser feita pela mulher ou por um casal. “A mulher ou o casal pode manifestar isso nos conselhos tutelares, nos hospitais, em postos de saúde ou em qualquer órgão da rede de proteção à infância. Aí, ela ou o casal vai ser encaminhado à Vara da Infância e Juventude e vai passar por um processo muito criterioso”, comenta.
Após a manifestação, a pessoa é encaminhada para uma equipe de interprofissionais, afirma a advogada Irna Verena Silva Pereira. “Até porque, em estados como o do puerpério, a mulher tem o psicológico afetado. Então, é verificado se há a vontade real da entrega da criança e, só após isso, a Vara toca o processo”, conta. Mariana Regis lembra que essa avaliação profissional resulta em um relatório que é entregue a uma autoridade judicial. “Ela vai ser ouvida por profissionais da equipe técnica, psicólogos, assistentes sociais que vão analisar se ela está realmente convicta e em condições de tomar essa decisão”, fala.
Se o parecer técnico apontar que a mulher ou o casal estão convictos da decisão, há, então, uma audiência para a destituição do poder familiar sobre aquela criança. “E ela sai do poder da mãe ou dos pais e passa para o poder do estado”, completa Irna Verena.
Sigilo
Nesta audiência, o juiz também informa sobre o direito ao sigilo que garante à mulher a escolha de informar ou não o nome do pai da criança e, também, a escolha de informar ou não a familiares e conhecidos sobre a sua decisão. Em sua carta aberta, Klara Castanho lembrou dessa questão e revelou que, no dia do parto, uma enfermeira ameaçou divulgar a informação. “Ela fez perguntas e ameaçou: ‘Imagina se tal colunista descobre essa história’”, lembrou.
Segundo a advogada feminista, professora e sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres, Gabriela Souza, a violação da intimidade de alguém é inconstitucional e passível de resposta cível. Além disso, a conduta de um profissional que quebra sigilo é tipificada no código penal. No artigo 154 está firmado que “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem” pode gerar uma punição de detenção, de três meses a um ano, ou multa.
“Da mesma forma, tanto médico como enfermeiros respondem nas três esferas: administrativo, perante seus conselhos porque as atitudes deles violam seus respectivos códigos de ética; criminais, pelo crime contra a honra cometido e cíveis, em razão da violação moral à existência da atriz”, elenca Gabriela.
A advogada lembra que aqueles que vazaram a informação para o público também podem ser responsabilizados criminalmente por calúnia e difamação, além do pedido de uma retratação. “Acho que é urgente que sejam responsabilizados. E mais que isso: que o caráter pedagógico desta condenação necessária, em pagamento de danos morais, seja forte o suficiente. Para que eles parem de ‘calcular que vale a pena’, porque a verdade é que eles entendem que a eventual condenação a pagamento de danos é pequena perto dos likes”, destaca.
Neste domingo (26), os Conselho Federal e Regional de Enfermagem de São Paulo anunciaram que vão apurar a denúncia da atriz sobre a abordagem e ameaça da enfermeira. O hospital onde ocorreu o parto informou, através de nota, que será aberta uma sindicância interna para investigar a denúncia.
No mesmo dia, o site Notícias da TV revelou que o marido de uma enfermeira do hospital onde a atriz estava internada ligou para a Record, RedeTV! e colunistas de celebridades para vender informações sobre o parto que aconteceu em maio deste ano. De acordo com o site, ao ser avisado de que jornalistas não pagam por informação, o homem teria ficado furioso e dito que a “esposa era enfermeira de um hospital e que tinha uma bomba da Klara Castanho. Queria dinheiro”.
Estupro e aborto
É importante ressaltar que o caso da atriz traz um contexto ainda mais perverso: o de uma violência sexual. Klara teria o direito ao aborto assegurado por lei. Nesse caso, o procedimento deve ser disponibilizado no Sistema Único de Saúde (SUS), sem restrição quanto ao número de semanas da gestação e nem necessidade de decisão judicial para autorização.
Ainda assim, devido às circunstâncias ela optou pela entrega legal para a adoção. Mas, essa não é uma necessidade para a utilização desse recurso jurídico. Mariana Regis lembra que o aborto é crime no Brasil e a entrega legal ou voluntária também se destina para os casos em que a mulher não quer praticar um aborto. “A entrega legal não só evita o crime de abandono de incapaz como, também, que mulheres que não desejam viver a experiência do aborto, pratiquem. Porque é a única alternativa de não cuidar daquela criança. Então, este processo traz a possibilidade de que mães ou casais não incorram em práticas que ainda são consideradas crimes no Brasil”.
Adoção irregular
Outro fator importante quando se pensa na entrega legal ou voluntária é a diminuição dos casos de adoções irregulares. Ainda é muito comum que crianças e adolescentes sejam entregues por mães e pais para serem criados por outras pessoas ou famílias. Conhecido como ‘adoção à brasileira’, esse ato burla o processo de habilitação do Sistema Nacional de Adoção de Acolhimento (SNA) e, além de ser passível de investigação e punição, gera um risco para todas as partes envolvidas.
“Traz risco, em primeiro lugar, para a criança ou adolescente, que é adotado de forma irregular por pessoas que não foram avaliadas por psicólogos, por assistentes sociais, elas não foram necessariamente consideradas aptas pela Vara da Infância e Juventude para adotar. Gera um risco para quem entrega os filhos, que podem ser investigados pela polícia e intimados pelo poder judiciário para dar explicação sobre o fato. E quem recebe o filho diretamente, não vai conseguir garantir os direitos básicos, não consegue matricular em escolas, não consegue viajar etc”, informa Mariana.
Irna Verena acrescenta que a pessoa que recebeu a criança ou o adolescente pode até ter a guarda, mas isso não retira o poder familiar dos pais. “Já no processo de adoção, a criança é recepcionada como se filho natural fosse”.
Por fim, Mariana Regista destaca que a atitude da atriz Klara Castanho promoveu a segurança do bebê que ela deu à luz. “Ela poderia praticar o crime e ter desprotegido a criança, mas ela fez o oposto. Ao seguir o processo legal ela garantiu a segurança dessa criança, ela foi extremamente responsável com ela e com o bebê”, conclui,