– Ei, mocinha! Você pode chamar o dono, por favor?
– Só vou treinar aqui se tiver um homem dando aula.
– Se tivesse um coach (homem) aqui, te ajudaria mais nos negócios.
Frases como essas estão na rotina (quase diária) de Arantia, Denise e Talita. Empresárias de espaços para crosstraining na Bahia, as três são exemplos de um movimento que vem rompendo a barreira do machismo na prática esportiva que é sucesso mundial. O crossfit foi criado por um homem e por muito tempo a prática esportiva teve o preconceito como seu braço forte.
Nos últimos anos, o cenário começou a mudar. Com o mercado fitness em alta, mesmo com o reflexo da pandemia, mulheres atletas/ex-atletas resolveram investir no negócio através da criação de boxes (espaços dos treinamentos), venda de acessórios e também como head coachs (responsáveis técnicas pelos treinamentos – algo considerado impossível alguns anos atrás).
“Existe um preconceito enorme, um machismo predominante. As pessoas buscam uma voz de comando masculina. É angustiador. Muitas vezes sinto que, se fosse um homem falando, as pessoas iriam entender de maneira diferente. Já passei por muitas situações de machismo no box com homens, com funcionários e com alunos”, destaca Arantia Lopes, 33 anos, sócia e head coach da Vibrar 55 Crossbox, que funciona em Paripe, no Subúrbio de Salvador. “Recebo o estereótipo de braba pela falta de respeito das pessoas com a posição de uma mulher ser empreendedora, ser comandante e dona do negócio”, diz.
Arantia começou a gerenciar o negócio em março de 2020, logo nos primeiros momentos da pandemia de covid-19. “Sou uma mulher suburbana e tive que estudar para me tornar quem eu sou. Sou uma das poucas donas de box de crossfit em Salvador. Eu enfrentei os piores momentos no começo da pandemia. Tive que colocar o preço da modalidade lá em baixo. Oferecemos aulas on-line, fizemos aluguel de equipamento, criei grupos exclusivos de WhatsApp”, ressalta a empresária, que é profissional de Educação Física e especialista em Gestão Esportiva. Ela começou sua relação com o crossfit em 2016 para potencializar seus treinos de karatê.
O comando do empreendedorismo feminino no crossfit é minha dor de cabeça hoje à frente dos negócios. O machismo dentro da modalidade é muito forte.
Arantia Lopes, 33 anos, sócia e head coach da Vibrar 55 Crossbox, localizado em Paripe, no Subúrbio de Salvador.
Mercado esportivo está em expansão; gestão feminina é diferencial
A pedido do CORREIO, a Junta Comercial do Estado da Bahia (Juceb) fez um levantamento que mostra uma tendência de investimentos em aberturas de negócios ligados ao esporte, incluindo crossfit, no estado. Somente em 2022, até o final de maio, foram abertas 128 empresas ligadas ao mundo fitness. Em 2017, foram 74. Em 2018, 93. Em 2019, foram 141. Já em 2020, em função da pandemia, caiu para 62. Em 2021, voltou a recuperar fôlego para 130 aberturas. Os dados de novas empresas não especificam o gênero da composição da sociedade, mas os movimentos femininos nos comandos dos boxes têm sido constantes.
Uma dessas empresas é a Box Saad, aberta em agosto de 2018 por Talita Sampaio Saad, 37 anos, profissional de Educação Física, e sua esposa Kenya Peixoto, em Porto Seguro, no sul da Bahia. O comando 100% feminino, com todos os treinamentos ministrados por Talita, que é a head coach do espaço, é o diferencial do centro de crosstraining.
Kenya Peixoto (esq) e Talita Saad (dir) comandam o Box Saad, em Porto Seguro (Foto: Hudson Andrade/ Divulgação) |
A ideia de empreender no crossfit veio da paixão de Talita pela atividade física. “A atividade física sempre esteve presente na minha vida. Na faculdade – depois de tentar marketing –, resolvi que faria Educação Física e me encontrei. Em 2012, em Porto Seguro, eu e Kenya abrimos o Studio Talita Saad com foco no treino funcional. Em 2016, começamos a ouvir falar de crossfit, pesquisei e, mesmo sem ter barra olímpica, comecei a treinar o levantamento de peso com PVC. Fiz aulas experimentais em outros boxes e, a partir daí, o curso Level 1 (qualificação em crossfit)”, destaca Saad, reforçando a necessidade de uma formação adequada como diferencial na modalidade.
Com a pandemia, Saad achou que seu sonho viraria falência. “Quando precisamos fechar por conta da quarentena, tínhamos quase certeza de que não voltaríamos. Fizemos aulas on-line, aluguel dos equipamentos do box, pensamos em várias estratégias, mas estávamos muito limitadas, as contas e gastos não pararam. O dono do prédio suspendeu o pagamento dos aluguéis nos 5 meses em que o box ficou fechado, o que deu uma amenizada”, lembra. “Reabrimos em agosto de 2020 com medo, e com uma queda de mais ou menos 70% dos alunos, uma quantidade muito menor de alunos por turma e tivemos que baixar muito o valor da mensalidade para recrutar novos alunos”, explicou.
A força feminina na gestão reflete também no número de clientes que possibilitaram a manutenção do espaço em funcionamento e um ‘remédio’ contra o machismo. “Já ouvi coisas como ‘se tivesse um coach – homem – aqui, te ajudaria mais’. Volta e meia alguém aparece lá para pegar informações e pergunta se é “academia” só para mulheres”, conta.
Apesar de não ser uma academia para mulheres, 90% do público é feminino. “Acredito que um dos motivos para isso acontecer é porque o box e as aulas são comandados por mulheres. Nossos alunos homens nunca faltaram com respeito ou foram preconceituosos por terem o comando da aula feminino. Recebemos muitos turistas e principalmente quando eles vêm para cá, fazem uma comparação com os coachs de onde treinam. Sempre elogiam os treinos e dizem que é o mesmo esquema de treinamento”, destaca.
Qualificação e desenvolvimento empresarial
Arquiteta por formação, Denise Tavares, 34 anos, é sócia-proprietária da Agreste Cross Training, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. Ela investe na gestão participativa como estratégia para driblar o machismo e fortalecer seu negócio, fundado há sete anos.
“Os cargos de liderança não são normalmente confiados às mulheres e no meio esportivo isso não seria diferente, infelizmente. É uma luta diária. Dificilmente uma pessoa chega lá no box e me vê como dona. Sempre acham que é o coach homem. Mas minha gestão é participativa e muito próxima de tudo. Em um instante de conversa quem tem dúvida sabe que eu sou a responsável pelo espaço”, conta Denise, que atualmente está fazendo formação em Educação Física para ampliar seus conhecimentos.
Denise Tavares comanda a Agreste Cross Training, em Lauro de Freitas (Foto: @alevieirafoto /Divulgação) |
Inclusive, ela dá aulas como estagiária no box. “Muita gente acha, inclusive, que eu sou a head coach por eu ter um comando tão firme. Não diferenciaria a qualidade dos boxes pela gestão feminina ou masculina. Obviamente, nós mulheres temos uma sensibilidade mais apurada, que faz a diferença junto com a capacidade técnica”, resume.
Queremos empoderar outras mulheres para investir também no empreendedorismo no crossfit
Denise Tavares, 34 anos, sócia-proprietária da Agreste Cross Training, em Lauro de Freitas
Dados do Crossfit Brasil indicam que o Brasil tem a segunda maior quantidade de boxes filiados à modalidade do mundo. A área, como explica Rosa Bispo, gestora Estadual do Sebrae Delas Bahia, é promissora. Apesar do machismo, pondera Rosa, a sociedade e instituições têm buscado aumentar a equidade da participação feminina nos negócios em áreas que são promissoras, como o crossfit, mas que ainda tem uma presença masculina muito expressiva.
“O próprio mercado de crossfit no Brasil é promissor. Isso facilita que essas oportunidades de negócios sejam vislumbradas por mulheres. Afinal, o setor de serviço é o segundo que mais cresce no empreendedorismo feminino. A presença feminina no crossfit também vem do marketing através de muitas mulheres que são influenciadoras digitais na área de saúde, cuidado e bem-estar que mobilizam outras mulheres”, argumenta.
A reportagem procurou o Crossfit Brasil para falar sobre a presença feminina na modalidade, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
‘Acesso ao crédito é desafio’, destaca especialista
O mercado fitness do Brasil está em alta, mas ainda não há equidade de acesso entre homens e mulheres. Especialista em pequenos negócios, Flávia Paixão pontua que o empreendedorismo feminino carece de mais investimentos, fomento ao desenvolvimento através da profissionalização e acesso facilitado ao crédito.
“Temos uma questão estrutural da sociedade machista que vê as mulheres com profissões relacionadas a cuidado, ou então profissões relacionadas a trabalho de casa. Acredito que as empreendedoras devem se profissionalizar, inclusive na hora de buscar acesso ao crédito. No momento em que essa empresária vai ao banco, existe uma resistência daquele gerente de achar que ela está empreendendo somente por uma paixão. Isso dificulta o acesso ao crédito e o desenvolvimento de negócios por mulheres”, reforça Paixão, que é apresentadora do programa Empregos & Soluções no CORREIO.
Em faturamento, o mercado fitness no Brasil alcançou a marca de US$ 2,1 bilhões em 2019, sendo o terceiro maior das Américas, atrás apenas dos EUA e do Canadá (com receita de quase US$ 3 bilhões), de acordo com a International Health Racquet & Sportsclub Association (IHRSA).
Quer investir em crossfit? Veja dicas para ter crédito
1. Tenha seu plano de negócio. É um documento que vai juntar informações relevantes para análise do banco.
2. Identifique suas necessidades para ter a certeza de que o financiamento é a melhor solução.
3. É importante tomar crédito de forma consciente.
4. Analise se o lucro da sua empresa é suficiente para quitar esse financiamento e leve em consideração as taxas que são cobradas, como seguros de tarifas.
Fonte: Rosa Bispo, gestora Estadual do Sebrae Delas Bahia
Entenda os termos
CrossFit – é o nome do programa de exercícios de alta intensidade que combina levantamento de peso, ginástica e corrida, criado pelo americano Greg Glassman em meados dos anos 1990, e que se transformou em um fenômeno mundial. É cobrada uma taxa de franquia para os boxes usarem o nome crossfit.
Crosstraining – É a expressão em inglês para treino funcional, às vezes, também traduzida literalmente como treino cruzado. Desde 2020, após polêmica machista envolvendo o criador, houve uma desfiliação de centenas de boxes que pararam de usar o selo crossfit.
Head Coach – responsável pela aplicação técnica dos treinos.
Box/boxes – espaços onde acontecem os treinamentos.