No Brasil, nega-se à mulher o direito de interromper a gestação, localizando o seu corpo – a sua saúde física e emocional – em posição hierárquica inferior à do feto/embrião. Setores conservadores da sociedade (especialmente sob influências religiosas) alegam que a entrega para a adoção seria uma “solução” no caso de gravidez indesejada. Quem aborta, mesmo em casos de estupro, ainda é adjetivada como “assassina”.
O Estado também expressa seus esforços em controlar o corpo das mulheres, obrigando-as a serem mães, ao estabelecer punições para quem deseja interromper a gravidez. O Ministério da Saúde, por exemplo, editou recentemente um documento intitulado “Atenção técnica para a prevenção, avaliação e a conduta nos casos para abortamento”. Este guia despreza a legislação vigente e a jurisprudência da mais alta corte do país ao afirmar que “todo aborto é um crime”. E mais: orienta a investigação policial de mulheres que realizem aborto legal a partir de agora – ou seja, até mesmo em casos de violência sexual.
Curiosamente, quando uma mulher em contexto de gravidez indesejada não aborta mas entrega o(a) filho(a) para a doação por não ter condições de criá-lo, seguindo todos os trâmites exigidos por lei, o discurso muda. E novamente, ela é condenada, tratada como “irresponsável”, “egoísta” – ainda que o instituto jurídico proteja também a integridade da criança.
E se esta mulher decide permanecer com o(a) filho(a), insta destacar que o Estado as abandona, pois sequer cumpre as obrigações previstas em leis e tratados internacionais que asseguram a proteção integral da infância e da maternidade.
Logo, vê-se que não há uma genuína preocupação com a vida nestes discursos que se opõem ao aborto e à entrega legal para a adoção.
E como bem disse a Debora Diniz, o que liga a menina de 10 anos de Santa Catarina e a atriz da Globo, ambas vítimas de estupro, não é simplesmente o debate sobre o direito ao aborto e a entrega legal para adoção. Mas, sim, a maternidade compulsória, o controle dos corpos e negação da autonomia das mulheres como recursos fundamentais na manutenção do patriarcado.
Controlar a reprodução das mulheres é mecanismo de controle social. Afinal, qual o lugar destinado às mães historicamente? A do ambiente doméstico/privado (ou seja, são corpos que dificilmente ocupam espaços decisórios e de poder para disputar narrativas, criar políticas públicas a partir das demandas do seu grupo), da desvalorização no mercado de trabalho e limitada ascensão profissional, da exploração e invisibilização dos serviços de cuidado, da dependência financeira, da maior vulnerabilidade à violência sexista. A reboque, temos o estabelecimento de padrões inatingíveis de perfeição que as empurram para o consumo.
A maternidade compulsória é, pois, parte de um projeto político de opressão de mulheres e de manutenção do poder patriarcal no capitalismo. Sem gestar e com licença social para serem pais irresponsáveis, homens ocupam espaços públicos de decisão, ascendem na carreira e acumulam riquezas.
Sim, quando pensamos no fenômeno da paternidade, é impossível não relacionarmos à liberdade de escolha e à cultura do abandono. O abandono paterno é expressão de intolerável descuido e descumprimento de deveres. Causa graves e profundos danos existenciais – muitas vezes irreversíveis, para mães e filhos(as).
No entanto, temos um Estado empenhado em criar políticas públicas que visem o fomento do seu exercício, reconhecendo que o abandono é questão social urgente? O Direito e o Judiciário estão voltados para proteger os filhos da negligência paterna – e suas mães – dos danos advindos desta conduta?
Nesta senda, é preciso lembrar por quem – e para quem são feitas as leis. Que elas informam e produzem poder de gênero. Que o sistema de justiça afeta diferentemente homens e mulheres. Por isso mesmo, o legal nem sempre é justo.
Nas varas das Famílias, por exemplo, uma mãe só pode exigir do pai (executar) os valores referentes ao sustento do seu filho a partir do momento em que o(a) juiz(a) fixar a pensão.
Antes disto, embora todo homem saiba que tem o dever de contribuir para a sobrevivência da prole, goza do privilégio da escolha: antes de uma obrigação estabelecida pela Justiça, sustenta se quiser! Traduzindo: de acordo com a opção legislativa e com o entendimento majoritário dos juristas, homens têm licença para não se responsabilizarem pelo sustento material dos seus filhos até que a mãe consiga processá-lo. Quem paga esta conta até lá?
Essas provocações não traduzem expectativa nas leis ou no sistema judicial como uma resposta para um tema tão complexo. Afinal, o abandono material (deixar de pagar pensão a filhos) e abandono de incapaz são considerados crime com penas de reclusão e detenção respectivamente. Deixar de pagar pensão injustificadamente configura violência patrimonial e psicológica contra mães. No entanto, não se mudou a cultura: muitos homens continuam não registrando seus/suas filhos(as), abandonando-os(as), violentando mulheres patrimonialmente e seguindo suas vidas como se nada relevante estivesse acontecendo – contando com o nosso silêncio cúmplice. Dispondo de um Judiciário que perpetua a subordinação de mulheres quando buscam os seus direitos e dos seus filhos.
Fato é que as mulheres, notadamente as que são mães, especialmente as negras e em situação de vulnerabilidade social são historicamente afastadas dos espaços de tomada de decisão e o resultado disso é que temos uma política de saúde e judicial pensada a partir de uma perspectiva que ignora a realidade de quem é mais vulnerável. Lidamos, afinal, com as consequências de escolhas das quais não participamos.
Se os homens engravidassem a partir de hoje, estou certa de que um sistema de autonomia e proteção lhes seria garantido imediatamente. E você?
*Mariana Regis é advogada atuante no campo do Direito das Famílias, com perspectiva interseccional de gênero. Professora da pós-graduação em Advocacia Feminista e Direitos das Mulheres (ESD). Co-fundadora do Instituto Brasileiro de Direito e Gênero.