Era um apezinho miudinho no Rio. Humaitá. Perto da Cobal, da Lagoa e de todos os novos desejos daqueles meus 28 anos. “Retorno de Saturno”, diziam. Eu tinha feito um trabalho grande na Bahia e ganhei uma quantidade de dinheiro jamais vista em minha conta. Há meses, eu pensava em Rio de Janeiro quase todo santo dia. Tanto que, uma vez, num ponto de ônibus, em Itapuã, um homem desconhecido passou por mim e disse: “você vai pro Rio de Janeiro”. Devia saber ler pensamento, o sacaninha que nunca mais vi pra dizer a ele que fui mesmo. Pois, quando olhei pro dinheiro, aluguei esse apartamento por telefone (adiantando três meses de pagamento) e fui de mudança, embarcada na viagem que mudou minha vida todinha. Por causa dela, inclusive, é que tenho a felicidade de ser mãe do meu filho.
Nessa época, Transa, o disco de Caetano que agora faz 50 anos, tinha 30. Ele nasceu em 1972, dois anos antes de mim, mas não sei por qual motivo, eu nunca tinha escutado certinho, na sequência, do início ao fim. No Manoel & Juaquim de Copacabana, fiz um amigo e ele foi morar comigo, por pouco tempo, no apartamento miudinho. Renato. Entre os incríveis, engraçados e amorosos momentos que vivemos juntos, tem ele me dar esse CD de presente. Rapidamente, essa passou a ser trilha sonora de muitos dos nossos papos e de algumas faxinas. Ali, vendo o Redentor pela janela, eu redesenhava a minha vida, enquanto escutava uma sequência de músicas das quais é impossível se cansar. Mesmo que você queira muito. Tem algum negócio estranho lá.
(Você não me conhece mesmo)
Tanto que, dez anos depois, na varanda do apartamento da Barra, de volta à Salvador, recém-separada, saindo de uma depressão pós-parto, quando eu voltei a cantar (pra mim), era o Transa. Alguém deve ter me xingado, em algum prédio vizinho, mas cantar You don´t know me, bem alto, em looping (para o que acho que ela foi feita porque o fim encaixa no começo), era uma coisa que me refazia. Um delicioso exercício de fisioterapia para a minha alma que se fortalecia, aos pouquinhos. Conforme eu dizia aquelas palavras em inglês e em português, a minha voz ia ficando mais forte, saindo mais de dentro, a ponto de eu voltar a achar bonita, até. Você não me conhece mesmo, era o que eu estava falando. “Dextá”. “Tô voltando”.
(I’m alive viva muito viva)
Há quem goste do CD todo, sempre. Eu, nem todo dia. Tem isso também. Mas a segunda faixa tem um efeito rebite que eu adorava nos desjejuns tardios, acompanhando aquele pão com um pedaço indecente de queijo coalho e vitamina de frutas que eu pedia no Sanduka. Principalmente, nas piores ressacas. A música garantindo que eu tava viva, porém nem eu acreditava. A comida ajudando a lembrar do que tinha acontecido na véspera, entre os finados Fosfobox e Dama de Ferro. Vários arrepios e muitos “né possívelll!” ditos só pra mim. Depois, um banho e “walk down Portobello road to the sound of reggae” ou algo assim que é o que se chama, hoje, de cropped e diz que a pessoa usa pra reagir.
(Triste Recôncavo, oh quão dessemelhante)
“Pule essa música aí falando mal de minha terra”, eu brincava assim ao escutar os primeiros acordes. Renato dizia “ô, Nega, deixe, isso é lindo” e não adiantava nada. Quando eu tava sozinha não deixava nem começar. Era uma saudade tão fodida que me dava, mesmo podendo ir e voltar quando quisesse. Uma dorzinha de ter decidido correr o risco de perder um tico que fosse do meu sotaque do Recôncavo, de onde ele – Caetano – e eu somos. Eu, nascida em Salvador, mas criada aqui. Até o vapor de Cachoeira, que eu nunca vi navegar, por lembrar que não navega mais, me doía. Hoje, é gostoso ouvir, de volta, do lado de muita bandeira branca enfiada em pau forte.
(Não somos tão fortes, senhor)
Outro dia, um amigo me mandou um mantra, dizendo ele que ia fazer bem pra minha casa. Podia até ser, mas antes disso, me deprimiria. Gosto não de coisa repetida em indianês, eu sem saber o que significa. Ele registrou que eu não gosto de mantra, só que a pura verdade é que adoro. Mas dos meus. Essa música, por exemplo, pra mim, só tem duas frases: “we’re not that strong, my Lord” – que serve pra trazer o lugar de humildade – e “It’s a long way” que é pra gente se aquietar e Caetano ficar brincando com a língua no “long” conduzindo a meditação. O resto também é bonito, mas a onda forte é essa aí. Vá por mim.
(Mora na filosofia)
Em Salvador, varanda do finado teatro Maria Bethânia, havia um bar incrível chamado Intermezzo. Toda vez que escuto essa música, me lembro de um namorado que, numa noite nesse bar, cantou isso pra mim me fazendo conhecer a estrofe “se seu corpo ficasse marcado por lábios ou mãos carinhosas, eu saberia, ora, vai mulher, a quantos você pertencia”. Que eu achei entre belíssima e profundamente escrota. Nunca consegui construir outra memória relacionada, portanto. Toda vez penso a mesma coisa. Nem sei falar dela. Pulemos, pois.
Neolitic Man e Nostalgia se misturam, pra mim, de alguma maneira. O que pode ser uma grande ignorância de minha parte. Aí, ainda que eu ache tão besta esse tal “e tudo bem”, é o caso de usá-lo. Eu não estudo música, não critico música. Eu sei que esse é um disco cheio de especificidades técnicas e históricas, tá tudo aí escrito e reescrito, estudadíssimo, cada acorde e intenção, detalhadamente. Não é essa a minha função. Eu só quero dizer que o Transa é um amigo velho, um bróder, meu e de muitas pessoas. Daqueles que sabem coisa pra cacete da gente, que vão junto, que completam as frases que começamos. Do tipo que estava lá quando coisas importantes aconteceram, que aparecem nas fotos antigas, que estão ali. Pra mim, é desse jeito e, pra ser sincera, se eu fosse um disco, era bem isso que eu queria ser: exatamente um Transa. E Caetano é foda (pra não perder o costume). Desde sempre e toda vez.