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O belo, o verdadeiro e o bem

Na semana passada, participei de uma pequena reunião na casa de amigos. Uma noite regada a ótimos vinhos, ótimas conversas e, principalmente, ótima música. Como meu talento para tocar instrumentos tende a zero, me limitei a ouvir os que se dispunham a compartilhar seus dons musicais. Em determinado momento, fui brindado com um momento de enlevo: a filha do casal de anfitriões, Malu, uma garota simpática e sorridente de apenas 15 anos, pegou seu violino e tocou uma peça de Camille Saint-Saëns: The Carnival of the Animals, R. 125: XIII – The Swan.

As conversas cessaram e uma sensação de transcendência tomou conta da sala. Havia, ali, algo de muito genuíno, belo e frágil, como se estivéssemos diante de um pequeno animal desconhecido ou ouvíssemos um idioma extinto. O arco deslizava como um afago pelas cordas do instrumento e através dele nos conectávamos com um mundo morto: aquele em que o compositor francês concebeu uma melodia tão prodigiosa que ultrapassou a fronteira do seu tempo, perenizando-se até vir parar neste início de século 21. Prosseguirá, provavelmente, por mais alguns séculos, encantando novos ouvintes em outros convescotes mundo afora.

Malu encerrou sua apresentação e nós a aplaudimos. Ela sorriu timidamente e se despediu dos mais velhos para ir dormir. Mas a melodia permaneceu em mim por algum tempo. Ao voltar para casa, escutei o tema na versão de Joshua Bell, minha favorita, e fui dormir embriagado de vinho e de virtude, como no poema de Baudelaire: “É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do tempo que lhe quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se sem perdão. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser. Mas embriague-se”.

Ao me ver diante de uma moça tão nova executando um tema tão antigo (Saint-Saëns morreu há pouco mais de 100 anos), minha frágil crença na humanidade – que andava meio empalidecida por uma pátina sombria – se revigorou. Porque um ato tão simples pode ser ao mesmo tempo profundamente simbólico, como uma árvore resistindo a uma motosserra. Mostra que somos resilientes, capazes de sobreviver à ignorância e perpetuar a beleza.

Ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, no último dia 12, o filósofo e economista Eduardo Giannetti salientou em seu discurso o dever da nossa geração de manter e propagar a chama do conhecimento e da criação, conservada pela espécie ao longo de milênios. Não por acaso, Giannetti é um dos mais profícuos intelectuais brasileiros, pensador arguto do potencial e das contradições do país. Destaco um trecho:

“Temos deveres e responsabilidades com os que nos precederam e, não menos, com os que vêm depois de nós. Se a memória é a correia de transmissão do espírito entre o passado e o presente, a imaginação criadora é a ponte capaz de nos conduzir ao futuro – o impulso capaz de tornar nossa herança legado, como ‘tocha olímpica’, às gerações futuras. Elos passageiros e efêmeros, cada um de nós, na cadeia do ser, somos, não obstante, veículos de anseios, talentos e valores que nos transcendem e projetam à eternidade – o belo, o verdadeiro e o bem”.

Enquanto escrevo esta breve crônica, volto a escutar o álbum de Joshua Bell que contém, entre tantas outras preciosidades, o tema de Saint-Saëns. Chama-se Romance of the Violin e costuma me levar a um estado de plenitude a cada audição. Há nele herança e legado, beleza e verdade, como havia, guardadas as proporções, na noite em que ouvi Malu tocar. Talvez sem ter plena consciência disso, e obviamente com impactos diferentes no mundo, ambos estão conduzindo rumo ao futuro a tocha olímpica a que se refere Giannetti. Não é pouco.

Harold Bloom certa vez afirmou: “Aprendi com Shakespeare que a vida humana é precária, que não podemos prever nem o que vai nos acontecer daqui a uma hora, e que as únicas coisas de valor no mundo são a inteligência, a beleza e o amor”. Do alto de minha insignificância, acrescento ao que disse o mestre: São eles – a inteligência, a beleza e o amor – que nos salvam da barbárie e nos permitem esquecer os tempos rudes e o pasmo diante do abismo.

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