Num dia chuvoso, como esta noite em que escrevo, me despedi na semana passada de um tio muito querido. Testemunhei comovido o adeus atroz, a devastadora cerimônia da separação. Em certo momento, comentei com um primo que estava ao meu lado no velório: já são dezenas de milênios ocupando o planeta e não perdemos o espanto e o desespero diante da partida. “Apenas a matéria vida era tão fina”, cantou Caetano.
Na mesma canção, Cajuína, ele indaga: “Existirmos a que será que se destina?”. Tentamos responder a essa indagação todos os dias: no caminho para o trabalho, nas mesas de bar, na mão que acalenta a cria, nas madrugadas insones com seus pensamentos tenebrosos. Fazemos o possível para dar algum sentido à existência e encontrar motivações para continuar pesando sobre a Terra.
Não é difícil. Viver, com raras exceções, é muito agradável, prazeroso, estimulante. Temos os mares por navegar, as cidades por desbravar, os livros, filmes e canções a nos abarrotar de fascínio, o desejo consumado, as grandes amizades, o amor que nasce e se sedimenta gerando seus frutos. Sobretudo o amor, nosso único mecanismo de sobrevivência, para usar as palavras de Leonard Cohen. Mas até onde vai essa sobrevivência?
Segundo Julian Barnes, no livro Altos Voos e Quedas Livres, “o fato de alguém estar morto pode significar que a pessoa não está viva, mas não significa que ela não exista”. A chave estaria então na memória, esse oceano revolto de impressões e reminiscências que guarda muito daquilo que fomos na consciência dos que ficam. Um gesto, uma voz, uma piada, um apelido, um episódio vivido, tudo se reproduz como o mato que invade uma cidade abandonada.
Há, evidentemente, um limite nessa reprodução. Para ficar em um exemplo pessoal, o que resta do meu bisavô, além de uma foto dele que adorna a minha biblioteca e do livro que escreveu, guardado com carinho também aqui na biblioteca? Ambos são provas de que ele, bem ou mal, imprimiu suas pegadas no solo do tempo. Mas essas pegadas se tornam cada vez mais tênues, como se o mar dos séculos fosse apagando aos poucos o fato de que meu bisavô um dia existiu. Ocorrerá o mesmo com meu tio, comigo, com meus futuros bisnetos – enfim, com todos nós.
Recorro novamente a Julian Barnes, que fala exatamente sobre isso em outro livro, o magistral O Sentido de um Fim: “À medida que as testemunhas da sua vida vão diminuindo, existe menos confirmação, e portanto menos certeza, a respeito do que você é ou foi. Mesmo que você tenha registrado tudo assiduamente – em palavras, sons, imagens – você pode descobrir que se dedicou à forma errada de registro.”
Talvez sejamos um tanto pretensiosos quando imaginamos que de alguma forma permaneceremos, se sequer a Terra permanecerá. A poeira e o oblívio nos aguardam e um dia os encontraremos. Mas há um consolo. A transitoriedade – com toda insignificância que ela encerra – nos permite ter uma noção, ainda que vaga, do que é verdadeiramente precioso para nós.
É certo que as mazelas do cotidiano, o dinheiro curto, a letargia e certos traumas, perdas e frustrações não nos permitem cultivar o hábito de transcender. Afinal, a vida real não é para amadores. Mas é nossa, é única, é valiosa. E, já que estamos aqui, tratemos de desfrutá-la. Como escreveu certa vez João Guimarães Rosa: “Penso que chega um momento na vida da gente em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de eternidade.”