Quando éramos crianças, lá pras bandas da Cidade Baixa, nossa vizinha de porta costumava entregar “ao tempo e ao vento” quem lhe fizesse algum mal. Embora essa fosse uma vingança apenas verbal, e muito simples para alguém do signo de escorpião, nós costumávamos ficar arrepiadas, eu e a minha irmã, quando a vizinha dizia aquela frase, bem alto, para quem quisesse ouvir, ajoelhada no batente frio de sua casa humilde, olhando para o céu com ênfase ritualística.
Nossa vizinha não desejava mal a quase ninguém, que fique claro. Se penso nela, só lembro o quanto eram enormes o seu corpo e o seu coração. Mas ela já sabia o que só aprenderíamos mais tarde, que o Destino segue o seu curso impiedosamente e que a criatura em questão, a quem se destinava aquela espécie malsã de encantamento, experimentaria, de algum modo e em algum ponto, a magia inexorável da natureza. Fosse a ação de forças contrárias ou a inversão das marés.
Sacudida por tempestades, dessas que vem e vão na vida de cada ser humano, assim eu imaginava em minha ingenuidade de oito anos, a pessoa amaldiçoada teria diante de si a grande regra do universo, enfim, revelada: a verdade é que não somos nada, nada além de corpos compostos por partículas estelares, com microbiotas colonizando a pele. Microscópicos hospedeiros, insuspeitos, habitam tanto os rostos dos astros de Hollywood quanto os dos invisibilizados pela sociedade.
Então, sempre que alguém se fizer de muito importante, apenas observe a sua face arrogante e pense nas extensas colônias de microrganismos que estarão, naquele exato instante, habitando o seu rosto, os nossos rostos de gente. Não há boniteza que seja imune a fungos. Nem há feiuras neutras às bactérias. O resto é só a ilusão de ser grande que, geralmente, alimenta as pessoas muito pequenas.
Imagine estar entregue “ao tempo e ao vento” em uma tempestade? Hoje entendo que nada pode ser mais cruel que desejar o abandono de alguém à própria sorte, relegado à solidão de quem sabe que será inútil gritar, trancafiado na impossibilidade de comunicar a dor que sente ou de movimentar, com o pensamento, as folhas verdes. Como a bruxa que Fernando Pessoa descreve em O último sortilégio, aquela que perde até o dom de conjurar um nome.