Li há algumas semanas uma reportagem da BBC sobre as “pedras da fome”, que surgiram recentemente nos leitos de rios da Europa. Essas rochas só são visíveis quando os níveis da água estão extremamente baixos, como é a situação atual da seca enfrentada pelo continente. Nelas podem ser lidas inscrições antigas, esculpidas por pessoas que viveram diferentes períodos de penúria extrema por conta da estiagem dos rios.
São frases amargas e comoventes, como essas: “Quem uma vez me viu, chorou. Quem me vê agora vai chorar”, “A vida florescerá novamente quando esta pedra desaparecer” e “Se você vir essa pedra de novo, vai chorar. A água estava baixa até aqui no ano de 1417”. Há, de certa forma, algo de premonitório nelas. Mostram o que acontece quando a natureza se revolta, quase sempre contra os excessos da humanidade.
No Brasil não há pedras da fome. Existem cidades submersas que voltam à tona quando rios, lagos ou represas atingem níveis muito baixos. Mas há no Brasil sinais inequívocos da fome. As inscrições não estão em rochas, mas em cartazes nas ruas. Milhares deles. E o nosso período de “seca” já vem se arrastando há um punhado de anos. Os piores de nossas vidas. Falo com certa propriedade.
Tenho 52 anos. Vivi os estertores da ditadura ainda criança e, já adolescente, contemplei o alvorecer imperfeito da nossa democracia. Presenciei momentos terríveis e outros revoltantes. Mas nada capaz de se equiparar à ruína dos tempos atuais. Uma era de boçalidade, truculência e estultice em larguíssima escala. Em outubro de 2018, escrevi neste mesmo espaço um artigo sobre os meus temores diante da escalada de um tipo extemporâneo de fascismo. Segue um trecho:
“O Brasil parece rumar de forma deliberada para o precipício. A pluralidade de ideias, que tanto se prezou após a redemocratização, está dando lugar a um discurso monolítico, que prega a violência, flerta com o obscurantismo e carece de compromisso com a verdade. (…) Há um risco grave de ruptura dos pilares que sustentam o nosso frágil tecido democrático e de toda uma concepção de civilização alicerçada em valores humanistas.”
Alguém poderia dizer que fui um visionário. Bolas de cristais, contudo, não se faziam necessárias naquele momento. Bastava observar o que acontecia nas ruas, na tevê, na imprensa, nos esgotos das redes sociais. A ascensão da estupidez se dava diante de nós com todo seu tenebroso esplendor, feito uma gangrena, uma excrescência na pele. Mas o que veio em seguida surpreendeu até os mais céticos. Não, nem os niilistas mais empedernidos imaginavam tamanha degradação.
O Brasil pós-2019 é um tremendo malogro em termos éticos, culturais, ambientais, educacionais, econômicos ou qualquer outro aspecto que se venha a lançar luz. Nem seria necessário repetir, mas vamos lá: no momento em que escrevo, temos 684 mil pessoas mortas pela pandemia da covid-19 no país. Não precisa qualquer outro dado para atestar o nosso fracasso colossal como sociedade. Assistimos a um genocídio exibido todos os dias em cadeia nacional.
Simplesmente permitimos isso. E permitimos que o sociopata responsável por todo esse caos prosseguisse disseminando a barbárie e promovendo a demência coletiva. Pior: há ainda a possibilidade, apesar de remota, de que ele permaneça à frente do país pelos próximos quatro anos. Sim, por mais absurdo que possa parecer, corremos esse risco. Não bastam a devastação institucionalizada, a ignomínia aviltante, a vulgaridade, o cinismo. Ainda tem gente querendo mais.
Se em 2018 a luta era para que a barbárie não triunfasse, a luta agora é para que ela não dizime de vez o que restou do país. A oportunidade é logo ali, no dia 2 de outubro. Mas não basta. É preciso estar atento e forte ao risco, mesmo que improvável, de uma ruptura institucional. E é preciso punir dentro da legalidade quem se esbaldou fora dela. Fazer, enfim, o possível e o impossível para que esses tipos feios, sujos e malvados sejam devolvidos à escória de onde surgiram.