O governo da Bahia ‘abriu mão’ de participar do leilão do Solar da Quinta, imóvel localizado no bairro da Baixa de Quintas, em Salvador, e que abriga, há 42 anos, o Arquivo Público do Estado (Apeb). O Solar está penhorado em um processo judicial que cobra dívidas da extinta Empresa de Turismo da Bahia S.A. (Bahiatursa), que deu lugar à atual Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado. Nessa segunda-feira (17), o prédio foi arrematado pelo lance inicial, de R$ 13,8 milhões, oferecido por uma pessoa de Petrolina, no interior de Pernambuco.
Por meio de nota, o Estado afirmou que o valor estabelecido para lance se distancia do valor de mercado do bem e que, por isso, “não participou do leilão nem exercitou o direito de preferência”. Ainda segundo o texto, a diferença “equivale a cerca de R$ 5 milhões, que, se pagos pelo Estado, significariam dano injustificado ao erário público”.
O governo da Bahia informou, também, que aguarda uma decisão do Tribunal de Justiça (TJBA) sobre o recurso apresentado contra a penhora do bem e a realização do leilão — aberto no dia 23 —, antes de ser feita a análise de sua validade e da do único lance ofertado. Além disso, o Estado disse “reafirmar sua decisão de, em sendo o caso, fazer o imóvel retornar ao patrimônio público de forma legal, mantendo-se ali o importante patrimônio cultural do Arquivo Público”. Em matéria publicada em 8 de novembro do ano passado, a Procuradoria Geral do Estado (PGE-BA) já tinha informado ao CORREIO que o leilão do Solar da Quinta é promovido por ordem judicial, e não pelo Estado.
Com isso, a permanência do Apeb no local, também conhecido como Quinta dos Padres ou Quinta do Tanque, ainda é incerta, o que causa apreensão a entidades como a Associação Nacional de Professores de História — Seção Bahia (Anpuh-BA), que apresentou uma moção de repúdio contra o leilão. Embora haja o entendimento, por parte da Anpuh-BA, de que a Quinta é um “bem público de uso especial”, a preocupação é maior quanto ao Arquivo, que reúne mais de 41 milhões de documentos — ou 7,5 quilômetros lineares — e constitui a segunda maior instituição arquivística do país.
Entre os documentos, se destacam, por exemplo, os manuscritos e impressos originais, produzidos, recebidos e acumulados quando Salvador se distinguiu por ser a capital político-administrativa do Estado do Brasil, de 1549 a 1763, além de registros considerados, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ‘memórias do mundo’.
“A Anpuh-BA preocupa-se com as condições em que se encontram os acervos citados, pois, além da perda do espaço propriamente dito, não há garantias de que serão devidamente preservados e disponibilizados para pesquisa e usos públicos”, declarou a instituição por meio de moção de repúdio.
Para o presidente da Anpuh-BA, Marcelo Lima, faltou ao Estado um diálogo com a sociedade, para que fosse encontrada outra solução ao pagamento das dívidas da Bahiatursa. “Existe um patrimônio cultural, um patrimônio histórico, material pra pesquisa. Isso tem, sem dúvida, importância pra sociedade, pra todas as instituições envolvidas, de urbanismo ao campo da história”, acrescenta Lima. Questionada sobre uma possível necessidade de transferir o acervo para outro local, a PGE-BA afirmou, por meio de sua assessoria, que o Estado “não vai fazer retirada de nada”.
Conforme a Associação dos Arquivistas da Bahia (Aaba), outra que tem se manifestado acerca do assunto, uma eventual mudança de lugar do acervo exigiria um planejamento estratégico de restauração, cuja elaboração pode durar bastante tempo. “Uma folhinha de papel pode levar um mês ou mais para ser restaurada. São materiais caríssimos os materiais de fazer restauração de documento”, explica a presidente da Aaba, Leide Mota. “Por isso que, na lei, fala que a gente precisa conservar o documento, para não precisar restaurar. É igual à medicina: você previne, para que o paciente não fique doente, porque o custo é mais alto”, acrescenta.
Foi exatamente isso o que determinou, em novembro do ano passado, o Ministério Público estadual (MP-BA) à Fundação Pedro Calmon, gestora do Arquivo Público. A autarquia, vinculada à Secretaria de Cultura (SecultBA), teve 60 dias para apresentar um plano de salvaguarda e remoção do acervo, mas não o fez. No último dia 7, uma audiência pública para debater a situação do Apeb com autoridades públicas, associações e cidadãos e que aconteceria na terça-feira passada (11) foi remarcada pelo MP-BA para 22 de novembro, às 14h, na sede no bairro de Nazaré. Ao contrário do que pensavam as entidades mobilizadas, porém, o leilão foi mantido na mesma data, 17.
O que dizem a legislação e o Iphan
O Solar da Quinta é tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1949. Um artigo do Decreto-lei número 25, de 1937, proíbe a venda de bens públicos dos entes federativos — União, estados e municípios — e que estão tombados, a menos que estes sejam repassados a outros entes federativos. Segundo o advogado Alexandre Medeiros, especialista em Direito Público, o fato de o imóvel em questão não ser pertencente diretamente ao Estado da Bahia, e sim a uma entidade de sua administração indireta, não muda isso.
“Há entendimento doutrinário no sentido de que a proibição de alienação deve alcançar todos os bens públicos pertencentes ao Estado, abrangendo até os bens das empresas estatais quando afetada a prestação de serviços públicos”, esclarece Medeiros. Ainda de acordo com ele, “entende-se que a vedação de alienação está em conformidade com a previsão constitucional que estabelece ser competência comum do Poder Público ‘impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural’”, conclui.
Procurada pela reportagem, a Superintendência do Iphan na Bahia respondeu que, “por força de Lei, não cabe ao Iphan questionar ou impugnar o eventual leilão judicial do bem tombado”. Além disso, amparada no mesmo Decreto-lei citado anteriormente, afirmou que os efeitos do tombamento do Solar permanecerão em vigor caso seja validado o leilão do imóvel, já que o tombamento incide sobre a edificação, e não sobre o Arquivo Público. Com uma eventual validação, o Iphan precisaria ser comunicado apenas para atualizar os dados referentes ao novo proprietário.
Com informações de Fernanda Santana