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‘Literatura para agradar a todos é bobagem’, diz cubano Leonardo Padura

A obra de Padura espelha o desalento da vida cubana nos anos 80/90, quando o país vivia o embargo imposto pelos EUA

Aos 67 anos, o escritor cubano Leonardo Padura é consagrado internacionalmente com uma obra que joga habilmente com o passado para, na verdade, refletir sobre o presente. Criou o personagem Mario Conde, detetive que, em vários de seus livros, revela sua habilidade em alternar tempo e espaço literários em narrativas policiais. E, em algumas experiências de Conde, Padura identificou como origem as vivenciadas por Andrés, protagonista de Febre de Cavalos, romance de estreia do autor cubano, que agora é lançando no Brasil pela Boitempo.

Escrito em 1982, o livro acompanha a atribulada formação do jovem Andrés, cujas transformações na adolescência refletem certas particularidades do cotidiano cubano. Com uma escrita cujos lampejos de engenhosidade já apontam para uma das principais características da hoje elogiada obra de Padura, o romance é marcado por suspense, dor e alegria. Sobre o assunto, o escritor respondeu por e-mail as seguintes perguntas.

Febre de Cavalos sai no Brasile pela editora Boitempo (divulgação)

Como identificar nesse iniciante Leonardo Padura o autor mais recente?
Com um olhar compassivo… Vendo a partir de agora o jovem com vontade de escrever um romance sem nunca o ter feito, recém-saído da universidade, 26, 27 anos e com pouca experiência literária, embora com muitas leituras e modelos. Um escritor que ainda não sabia quantas coisas a literatura lhe permitiria, mas teve desde então algo que não o abandonou: disciplina e ambição. E, entre 1983 e 1984, escreveu o melhor romance que foi capaz naquele momento de sua vida e carreira, e começou a fazer (ainda sem o saber) uma crônica íntima das vicissitudes de sua geração

Pode-se dizer que o protagonista deste romance é um Mario Conde adolescente, com idêntico interesse em interpretar o mundo ao qual pertence?
Talvez sim, mas acho que não. O Andrés que protagoniza Febre de Cavalos é talvez mais terno, menos irônico, definitivamente menos complicado existencialmente do que Conde. Andrés reaparecerá, já como médico formado, na série Conde e deixará uma ferida para seus amigos quando sair de Cuba para nunca mais voltar, embora permaneça próximo dos antigos colegas da adolescência.

A Cuba da ‘Febre de Cavalos’ tem alguma semelhança com a de seus conterrâneos, Guillermo Cabrera Infante e Reynaldo Arenas?
Creio que não. A de Cabrera Infante é uma Havana meio noturna, boêmia, com projeções cinematográficas e muito conteúdo erótico. A de Reinaldo Arenas é uma cidade suja, com sexo exagerado, dor e perseguição, em que tudo é hiperbólico. A da Febre de Cavalos é uma cidade talvez misteriosa, na qual tudo ainda está por descobrir: a noite, o sexo, a perseguição e a dor, um espaço de tentativa e erro, portanto é uma Havana com luz e escuridão, talvez também com algumas esperanças que depois se diluem em minha literatura posterior, quando o escritor e os personagens perdem parte de sua inocência.

A narrativa para enfrentar o problema das drogas “se esgotou porque deixou de chocar o público”, defenderam jornalistas latino-americanos no Festival Gabo, em Bogotá. Você acha que também na literatura a América Latina precisa de mais narrativas para enfrentar a “dessensibilização das drogas”?
Não me atrevo a fazer previsões em territórios tão variáveis e ilusórios como a literatura a ser escrita. De qualquer forma, acredito que a realidade do narcotráfico, tanto o tráfico como o consumo de drogas, continua sendo uma realidade muito dolorosa em quase toda a região, e a realidade é muito exigente em termos de ser levada em conta, inclusive pela literatura.

Em 1982, ao receber o Prêmio Nobel em Estocolmo, García Márquez proferiu seu famoso discurso intitulado ‘A Solidão da América Latina’, no qual mostrou a surpreendente realidade desta parte do mundo e as tragédias causadas pela violência, guerras e golpes de estado que deixaram milhares de desaparecidos e exilados. Hoje, García Márquez encontraria um continente melhor ou pior?
Pelo menos seria diferente. Não ouso qualificá-lo qualitativamente porque, se olhar para o mundo dos anos 80, eu o veria pela perspectiva romântica e inocente do protagonista de Febre de Cavalos e não com o olhar cético e desencantado de Mario Conde em meus últimos romances. Hoje, as ditaduras são diferentes, as sociedades também (vivemos na era digital, antes era analógica), e comparar as duas realidades seria um exercício muito árduo para uma entrevista. Precisaríamos de um texto ensaístico.

Cada vez mais autores estão presentes em um canal a priori improvável quando o assunto é literatura: o TikTok, uma forma muito eficaz de apresentar os trabalhos favoritos dos usuários e, em certos casos, conseguem aumentar a popularidade de algumas obras. O que você acha disso?
As estratégias de mercado para vender mais livros me parecem muito convenientes. São formas de aproximar as pessoas da leitura, da arte. Mas o complicador da questão é que essas estratégias escondem e promovem muita mediocridade. Não consigo imaginar um artista sério pensando em como promover seu trabalho nas plataformas digitais. Os problemas da criação são sempre os mesmos: a capacidade de dizer algo com sentido, profundidade e beleza. Com a capacidade de atingir “a alma das coisas”, como pediu Flaubert. A literatura não pode ser vista como uma competição de Miss Universo, mas infelizmente o mercado está nos levando a isso, e tudo isso faz parte de uma banalização desenfreada da cultura como parte de um exercício de ignorância, como mais um ato de consumismo.

Você acredita que os autores ficarão mais cautelosos ou com medo após o ataque a Salman Rushdie?
Pode ser. E seria lógico. Se para dizer algo que não é agradável aos outros se torna moda esfaquear escritores, então a verdadeira literatura desaparecerá, pois a arte da literatura é interrogativa da realidade e do pensamento, não afirmativa. Fazer literatura para agradar a todos é bobagem. Fazer literatura de propaganda é como um ato de prostituição. A literatura deve ser dissidente, politicamente incorreta. Rushdie foi esfaqueado fisicamente. Nas redes, facadas são dadas todos os dias ao prestígio de quem não pensa como os outros. Os fundamentalismos estão em festa. Às vezes pode dar a impressão de que ainda estamos na Idade Média: atos de fé, fogueiras, excomunhões… e facadas.

 

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