Mais que levantar bandeiras antidemocráticas, os atos de caminhoneiros bolsonaristas ao longo da semana escancararam uma deficiência histórica do Brasil: a dependência do transporte rodoviário. As imagens de estradas fechadas e caminhões parados reacenderam na população lembranças de 2018, quando um protesto da categoria provocou desabastecimento em diversas regiões do país.
Os impactos da paralisação desta semana foram menores por conta da adesão, inferior a quatro anos atrás, e pelo número de estradas afetadas. Mesmo assim, os bloqueios ilegais provocaram prejuízo diário de R$ 2 bilhões só no comércio, calculou a Confederação Nacional do Comércio (CNC), além de casos como um coração de um doador goiano que não pôde ser transplantado por conta do travamento.
O tamanho do rombo é explicado quando o seguinte dado entra no holofote: cerca de 65% de todas as cargas do Brasil são transportadas por meio rodoviário, calcula a Confederação Nacional do Transporte (CNT). O segundo modal mais utilizado é o ferroviário, com 20%, seguido do aquaviário, com 14%, vem em seguida.
“No mundo, quase toda carga em algum momento passa pelo caminhão. Seja para chegar a um porto ou estação ferroviária, seja para chegar na porta do consumidor final. A diferença do Brasil é que, por aqui, todo o trajeto é feito por caminhões, o que é muito ineficiente”, explica Antônio Carlos Bonassa, professor de cadeia de suprimentos do curso de Administração da ESPM.
O professor explica que o transporte por caminhões só é vantajoso economicamente para trajetos de até 750 km. Só que isso é menos que percorre uma carga de soja que sai de Luís Eduardo Magalhães, no Oeste da Bahia, e chega até o porto de Salvador para ser exportada. A distância entre as duas cidades é de, aproximadamente, 960 km.
Há ainda casos mais extremos, como motos fabricadas em Manaus que percorrem quase 4 mil quilômetros até chegar em São Paulo, em um trajeto que leva 14 dias de caminhão.
“Isso acaba prejudicando o consumidor pela demora de reposição dos estoques, pelo repasse do elevado preço do frete e até pelo desperdício, visto que o transporte rodoviário envolve mais riscos como acidentes e até roubos. É o que chamamos de ‘custo Brasil’”, esclarece o professor da universidade paulista.
Além do Brasil, essa dependência do meio rodoviário é observada em praticamente todos os países da América Latina e África. No entanto, os impactos são maiores aqui devido às dimensões continentais do nosso país.
“Temos que seguir o exemplo dos Estados Unidos, que diversificou. Há diversas linhas férreas cortando o país de leste à oeste e de norte à sul. Essa é a chave, diversificar. Tanto do ponto de vista de competitividade econômica, quanto do ponto de vista estratégico. Quem não depende apenas de um modal tem vantagem”, aponta Paulo César Marques da Silva, professor de Transporte na área de tecnologia da Universidade de Brasília.
Como chegamos até aqui?
A dependência que vemos hoje é reflexo de decisões de políticos do passado. Entre o fim do século XIX e o início do século XX o Brasil construiu uma estrutura férrea competitiva, com várias linhas cortando, principalmente, o Sudeste e Nordeste, as regiões mais povoadas no período.
A mudança de foco começou nos anos 30. Naquela época, carros e caminhões significavam modernidade, enquanto trens transmitiam a idade de algo antigo. Com essa visão, e ajuda de um forte lobby da indústria automobilística e de petróleo, o presidente Washington Luís lançou o Plano Catrambi, que previa forte investimento em rodovias para ligar o país. O governante dizia, na época, que “governar era abrir estradas”.
O investimento no modal rodoviário seguiu pela era Vargas, passando pelos anos 40, até chegar no auge durante o governo JK. Diversas montadoras chegaram ao país nesse período e o carro foi popularizado. Para dar vazão tanto ao transporte de passageiros e de cargas, o presidente mineiro elaborou um sistema de rodovias que convergiam na recém-construída Brasília para conectar o país.
Nesse meio tempo, as rodovias ficaram esquecidas. Novas linhas não foram construídas, deixando o Centro-Oeste e Norte desassistidos, enquanto as que já existiam começaram a ser entregues para à iniciativa privada em contratos não vantajosos.
“No Brasil, o administrador da ferrovia é o dono dela. Ele que decide quem usa ou não. Ou seja: se eu tiver uma carga para transportar do ponto X ao ponto Y e tiver uma linha férrea nesse caminho, eu não posso usá-la se o proprietário não autorizar. Um modelo totalmente diferente do visto na Europa, por exemplo, onde o Estado é dono dos trechos e o aluga para quem quiser. Além disso, os donos brasileiros costumam abandonar as partes menos lucrativas, focando apenas nas de maior demanda. Isso gera um fenômeno muito comum de pequenas cidades brasileiras que possuem trilhos não usados por trens há anos”, cita Antônio Carlos Bonassa.
O investimento em linhas férreas retornou nos últimos anos, com a construção das ferrovias Norte-Sul, ligando Maranhão a São Paulo, e Oeste-Leste, entre Tocantins e Ilhéus.
Já a cabotagem, transporte marítimo dentro de um país, também foi colocada sobre um arcabouço burocrático que a deixava inviável em muitos casos. Até pouco tempo atrás, apenas navios brasileiros com manutenção custeada pelo dono da embarcação podia fazer tal transporte. A legislação só foi facilitada no início deste ano.
O uso de embarcações também é dificultado em muitos rios brasileiros por conta da presença de hidrelétricas, que os transforma em inavegáveis.
“A soma desses fatores fez a gente chegar onde estamos hoje. Só que caso tivéssemos uma malha diversificada, a única coisa que não mudaria seria a possibilidade de esganamento do transporte com a paralisação de uma categoria. A Europa, por exemplo, sofreu recentemente com uma greve do sistema ferroviário. A questão é que, com mais variedade, aumentam as possibilidades de redistribuir as cargas pelos modais diferentes”, pontua Paulo César Marques da Silva.