Entra no site, vai lá e coloca no carrinho. Está pago e parcelado em até 12 vezes sem juros. Não precisa de requisição nem receita médica, mas também não tem cobertura pelo plano. Seu kit chegou. A partir daí, é só seguir as instruções que vem na caixa do teste genético de ancestralidade e de saúde. Faz a coleta de uma amostra da sua saliva e devolve o material pelo correio. Pronto. Leva de 30 a 40 dias para receber o resultado com inúmeras informações que nem imaginava que o seu DNA pode dizer sobre você. Simples assim.
Foi a curiosidade de tentar encontrar parentes desconhecidos que fez com que a bibliotecária e pedagoga Miriam Valle, 57 anos, resolvesse fazer um desses testes genéticos caseiros, também conhecidos como testes direto ao consumidor ou testes recreativos. O cruzamento das informações permitiu que Miriam não apenas encontrasse o pai e alguns primos distantes. O resultado apontou ainda que muitos dos seus familiares faleceram por problemas cardíacos.
“Achei o kit na internet. Além do teste de ancestralidade, resolvi fazer o teste de saúde pelo fato de já estar chegando em uma idade mais madura. Nas buscas, descobri não só essa tendência da família em ter problemas cardíacos, mas que meu pai que havia acabado de encontrar já tinha tido dois infartos. Com isso, mudei a minha dieta e comecei a me cuidar mais”, conta. Assim como Miriam, muita gente tem buscado os testes de ancestralidade e de saúde, seja para saber o que o torna único no mundo, ou para tentar desvendar informações sobre predisposição genética para o desenvolvimento de alguma enfermidade.
“O DNA contém as informações necessárias para formar nossas características, incluindo o risco para diversas doenças. Cada pessoa tem um DNA único, ainda que ele carregue similaridades com seus familiares, suas linhagens e populações. Vale lembrar que algumas características podem ter mais ou menos influência do DNA, em complemento a mais ou menos influência do ambiente”, explica o doutor em Genética e professor do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-tronco da USP (Universidade de São Paulo), Michel Naslavsky.
Até aí, tudo bem. Porém, esse esclarecimento é importante para entender o que esperar e o que não desses testes, como destaca Naslavsky: “Os testes genéticos caseiros que vem se popularizando nos últimos anos, costumam oferecer a interrogação de variantes genéticas comuns associadas à predisposição a doenças mais prevalentes na população como hipertensão, diabetes ou Alzheimer, por exemplo. Porém, é essencial que as pessoas saibam que estas condições são multifatoriais, ou seja, que uma ou duas variantes sozinhas não são suficientes para determinar o risco, tendo, portanto, validade clínica nula ou quase nula, ou seja, não tem propósito de diagnóstico”.
Se vale a pena fazer um teste desses? Apenas se a pessoa estiver bastante esclarecida que os resultados são mais curiosidades do que informações com valor clínico. O que o doutor em Genética e professor da USP, Michel Naslavsky reforça é que testes desse tipo são diferentes dos exames genéticos pedidos por uma equipe médica que investiga a queixa clínica de uma família afetada por doenças raras e graves.
“Caso a família tenha histórico com doenças raras e hereditárias, vale a pena investigar com a equipe médica sobre fazer um teste e consultas de aconselhamento genético, que servem para esclarecer as pessoas sobre os achados, riscos e condutas”.
Ontem, hoje e amanhã
Bola de cristal? No caso do profissional autônomo Luan Felipe Dos Santos, 23 anos, descobrir a origem de parentes mais antigos apontou também para algum tipo de predisposição ao alcoolismo, dependência de nicotina e calvície. “Passei a diminuir o consumo de café, visto que o teste apontou uma predisposição para o aumento de ansiedade após o consumo da cafeína, algo que eu suspeitava, mas que o exame meio que confirmou”.
Até 2022, somente pelo laboratório Genera – um dos que ofertam o teste caseiro – já foram realizados mais de 200 mil testes no Brasil. O médico mestre em Aconselhamento Genético e Genômica Humana e cofundador da Genera, Ricardo Di Lazzaro, aponta que uma das principais motivações pela busca crescente dos testes está no aumento do interesse das pessoas pela sua ancestralidade e na personalização dos cuidados com a saúde, bem-estar e prevenção.
“Primeiramente, é importante ressaltar que os testes genéticos são preditivos. O resultado deve ser interpretado como um instrumento adicional para a adoção de cuidados preventivos, como hábitos de vida mais saudáveis, exames complementares e check-ups regulares”, afirma. Na Genera há pacotes que custam de R$ 179,10 a R$ 399,50, a depender do tipo e detalhamento do painel.
No laboratório Genetika, o especialista em Genética Médica pela Universidade de Vanderbilt e ceo do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, Dr. Salmo Raskin, também reconhece o crescimento da procura pelos testes caseiros. O exame custa R$ 1,5 mil. “Os testes genéticos são um dos maiores avanços da Medicina no século XXI. Estamos começando a ter as informações detalhadas sobre as propensões genéticas, seja sobre o nosso passado através de teste de ancestralidade ou sobre o presente e o futuro através de outros tipos de testes de DNA. Por isso, começamos a dar uma importância grande a descobrir quais informações contidas em nosso genoma”.
Já no pacote vendido pela empresa Meu DNA, o mapeamento das origens e saúde em um único teste custa R$ 1.499. “Com o teste genético de saúde, no geral, as pessoas se mostram tranquilas quando não são encontradas alterações ou mais atentas a procurar o médico caso surja algum indicativo. O resultado serve como uma alerta, mostrando o que está no seu DNA e empoderando você em relação à sua saúde, mas não significa que certamente desenvolverá a doença”, afirma o biólogo e especialista em genética do laboratório, Iuri Ventura.
Por isso, a especialista em Genética Médica do DNA Laboratório, Fernanda Oliveira chama a atenção da importância de se ter em mente que os testes de ancestralidade ou testes diretos ao consumidor têm apenas um caráter recreativo.
“Para quem decidir fazer um teste caseiro é essencial avaliar a qualidade da análise e a técnica realizada. Eles analisam o DNA de forma menos específica e não confirmam ou excluem qualquer diagnóstico, por isso, não devem guiar nenhum tratamento”, orienta.
Limitações
Testes genéticos caseiros podem ajudar a prever algum tipo de câncer? Esse é um dos questionamentos que mais confundem aqueles que buscam essa resposta antes de entender as limitações dessa testagem. Quem tira essa dúvida é a médica oncologista da Clínica Amo, Aknar Calabrich:
“A gente sabe que pode acontecer de um paciente chegar ao consultório por conta de algum resultado apontado pelos testes caseiros, porém, é importante a confirmação com testes diagnósticos de laboratório confiáveis e uma avaliação médica. Nem sempre a presença de alguma alteração num gene está realmente associada ao risco do câncer”.
Diretora de Ética Médica da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM), Rayana Elias Maia, destaca que os testes genéticos caseiros não orientam nenhuma conduta clínica como medidas de rastreio ou profilaxia. O Brasil ainda não tem uma regulamentação direta sobre este tipo de teste, porém, a segurança dessas informações está enquadradas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD.
“O paciente pode entender de forma errônea o resultado e isso acarretar impacto psicológico ou induzir a condutas erradas. Os testes diretos ao consumidor não avaliam síndromes de predisposição porque olham apenas polimorfismos (que são variantes comuns da população). A partir dos polimorfismos não temos como calcular risco de predisposição a câncer”.
Logo, uma das principais consequências dessa falta de entendimento e interpretação é exatamente ter conclusões equivocadas com relação ao resultado. “O correto é que se há suspeita ou dúvida sobre o risco para uma determinada doença, procure um médico geneticista para avaliação do caso e indicação (ou não) de exames, conforme necessário”, completa.
Interesse pelos antepassados é a principal motivação da popularização dos kits
A curiosidade sobre a busca das origens é o principal motivo do aumento da procura dos testes caseiros. Pelo menos, é isso que as empresas especializadas na oferta desses testes vendidos na internet apontam. Apesar de não abrirem dados estratégicos sobre esse crescimento, laboratórios como o Meu DNA, ressaltam que o crescimento do interesse em adquirir o kit parte dessa motivação: “As pessoas buscam o teste de ancestralidade como uma forma de se autoconhecer, pois descobrir mais sobre seus antepassados e sobre a cultura enraizada em sua família, é também descobrir mais sobre si mesmo”, diz o biólogo e especialista em genética, do laboratório Meu Dna, Iuri Ventura.
No caso do teste de ancestralidade feito pelo laboratório, ele identifica centenas de milhares de marcadores genéticos presentes em 88 populações espalhadas pelo mundo. Com base nessa análise, é feita a comparação dos marcadores que uma pessoa tem em comum com cada uma das populações e a partir daí é feita uma estimativa das porcentagens do seu DNA que vieram de cada região.
Um dessas pessoas que fez recentemente o teste de ancestralidade com esse objetivo foi a publicitária e criadora de conteúdo, Emile Brito, 31 anos. “Era algo que eu queria fazer porque sempre senti vontade de entender a origem da minha ancestralidade africana. Me sentia perdida e triste com esse buraco interrompido de informações sobre meus ancestrais”.
No resultado do teste, Emile encontrou cerca de 93,4% de DNA de origem africana. “Apesar de toda a miscigenação, eu ainda carrego todas as informações da minha raiz. A análise apontou que sou quase que 50% de origem nigeriana, 15% do Benin e outros países da costa da mina. Já era uma cultura que eu admirava muito, e sempre escutei de amigos nigerianos ou angolanos, que eu parecia da Nigéria. Meu foco é que as próximas gerações da minha família saibam especificamente as suas origens, os países, as culturas, e que acessem esse conhecimento e levem para vida”, afirma.
No caso da química e divulgadora científica Kananda Eller, 26 anos, a falta de um relato de família muito exato de quem foram as pessoas que vieram antes dela foi que despertou esse interesse em saber de onde vieram seus ancestrais.
“Eu não tinha isso registrado na minha memória e aí quando eu fiz o exame, foi super importante para eu me conectar com outras culturas e etnias com maior propriedade. Minha análise apontou que mais 70% do meu DNA eram do continente africano e, principalmente, do Benin e foi uma alegria porque eu não conhecia muito o país”.
Kananda passou a concentrar mais na religião, a cultura e culinária africana. “Quis muito me conectar com a região. Comecei a perceber também, o quanto no meu dia a dia, eu tenho de herança desses países. É tudo muito apagado, muito velado, a gente não tem essa valorização da cultura africana no Brasil e esse meu olhar atento para a ancestralidade de saber e entender quais são esses países me fez perceber o quanto que na minha vida essa herança estava presente”.
Para a psicóloga e terapeuta sistêmica e integrativa, Rebeca Oliveira, essa curiosidade está muita muito ligada ao olhar da simbologia do pertencimento. “E socialmente falando, nós estamos passando por diversas transformações, uma atrás da outra. E isso mexe com o nosso olhar para o futuro, mas também na amplitude de horizonte que traz uma demanda de saber de onde viemos. A nossa história diz muito sobre nós, como família, pessoas, unidade. A necessidade de olhar para o passado ainda é eminente e nós precisamos continuar investigando nossa história, saber das questões transgeracionais que chegam até hoje, onde surgiram e identificar o que é mais possível de transformar agora”, analisa.
É MITO
1. “Os testes caseiros de DNA estão prontos para oferecer informações seguras sobre o que devo comer, qual esporte é mais adequado para mim, qual remédio vai me trazer efeitos colaterais”. Não, pois se tratam de análises preditivas e probabilísticas.
2. “Irmãos que são filhos de um mesmo pai e mãe têm o mesmo resultado”. É mito porque isso não significa que cada um vai receber os mesmos trechos de DNA.
3. “Posso utilizar meus resultados de teste de ancestralidade para obter cidadania em outros países”. Na maioria das vezes, não. Alguns países talvez possam utilizar os resultados, mas o teste sozinho não traz essa garantia.
4. “Existe um exame que mostra todas as doenças que teremos”. Não, isto porque os testes caseiros não têm validade clínica. As próprias empresas que oferecem indicam que este tipo de teste não tem valor diagnóstico.
5. “Todos os testes de ancestralidade são iguais”. Não, cada laboratório pode se utilizar de referências diferentes.
É VERDADE
1. A profundidade de um teste de ancestralidade tem relação direta com o tamanho da base de dados da empresa que oferta o teste.
2. Análises que sugerem dietas específicas ou a necessidade de suplementação nutricional com base na genética ainda não têm forte embasamento científico.
3. O resultado dos testes caseiros de DNA tem caráter recreativo. Não significa que certamente alguém vai desenvolver a doença, pois outros fatores, como estilo de vida e ambiente podem estar envolvidos no risco.
4. Nesse tipo de teste direto ao consumidor, não é necessária solicitação médica, ou seja, o paciente não passa por uma consulta antes do exame.
5. Quando bem indicados, os testes genéticos podem dar diagnósticos de doenças raras, aconselhar famílias sobre riscos e até guiar tratamentos. No entanto, isso para pela orientação prévia de um aconselhamento genético com um especialista para compreender a utilidade e as limitações dos exames.
SAIBA MAIS SOBRE OS TESTES GENÉTICOS CASEIROS
. Como esses kits caseiros para testes de DNA funcionam e que informações é capaz de identificar?
O DNA (sigla em inglês para ácido desoxirribonucleico) é a molécula que fica dentro de praticamente todas as células que formam nosso corpo, contendo em si toda a informação genética. A partir da coleta da amostra pela saliva são analisados milhares de SNPs informativos (sigla em inglês para polimorfismo de nucleotídeo único) em diferentes genes ao longo de todo o genoma permitindo, a depender do tipo de teste, trazer estimativas sobre ancestralidade, bem como predisposição a diferentes condições e doenças com base em análises probabilísticas.
. Quando vale a pena fazer teste genético para diagnosticar doenças?
Também conhecidos como testes direto ao consumidor ou testes recreativos, a diretora de Ética Médica da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM), Rayana Elias Maia, destaca que antes de decidir adquirir os kits caseiros para testes de DNA é importante entender do que se trata o teste e suas limitações. “Muitas vezes as pessoas não entendem que não se trata de um teste para diagnóstico e que avalia apenas polimorfismos, ou seja, variantes comuns na população e não condições genéticas. Por isso, é essencial saber qual é o seu objetivo. Importante também entender o resultado dos testes. Muitas condições têm origem multifatorial, ou seja, não apenas influência genética”.
. Os planos de saúde são obrigados a cobrir a realização desses exames?
Segundo informações da a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a análise genética conhecida como teste de ancestralidade não está contemplada no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde vigente e, portanto, não tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde.
. E com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), como ficam essas informações?
O doutor em Genética e professor do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-tronco da USP (Universidade de São Paulo),Michel Naslavsky, destaca que cabe ao consumidor avaliar se a empresa é idônea e monitorar suas condutas. “O essencial é perguntar a empresa antes de realizar o teste todas as dúvidas e exigir que exista transparência sobre o que esperar e o que não esperar dos testes”.
*Os valores dos testes foram pesquisados no dia 11/11/2022.