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Confissão de um ato de covardia

Na semana passada, a convite de um grande amigo, participei de uma conversa enriquecedora com estudantes de jornalismo de uma faculdade de Salvador. Pessoal jovem, interessado e motivado, cheio de anseios e aspirações, como eu era na época da faculdade. Falamos do meu trabalho como cronista, do ofício de jornalismo, com todas as suas dificuldades e virtudes, e dos desafios que os esperam. Falei muito, mas também ouvi bastante.

Em determinado momento, um aluno me perguntou qual foi a experiência mais desagradável que eu vivenciei na minha época de redação. Então confessei uma grande frustração: uma reportagem que por tibieza e comodismo deixei de fazer e que poderia ter interferido de maneira positiva na vida de pessoas muito pobres. Isso faz uns 18 anos, talvez. Conto esse episódio aqui, como contei lá.

Era repórter de cultura e fui cobrir uma noite do Festival de Verão, no Parque de Exposições. Estava no carro do jornal com o fotógrafo e o motorista e nos deparamos com a avenida Paralela totalmente congestionada. As horas andavam, mas nós não. Depois de um tempo, o motorista conseguiu fazer o retorno e pegou um caminho alternativo, que mergulhava nas entranhas de Salvador.

Percorremos a Estrada Velha do Aeroporto e em dado momento pegamos um atalho por uma estradinha de barro numa baixada sem qualquer iluminação, conhecida popularmente como “estrada da desova”. Era lá que grupos de extermínio costumavam (ou ainda costumam) depositar o fruto do seu trabalho. Definitivamente, estava em outro mundo, e ele me amedrontava.

Passada a estrada da desova, voltamos a outro trecho da Estrada Velha, e lá nos deparamos com um monte de entulho ocupando toda a pista. No acostamento, dezenas de pessoas gritavam. Homens, mulheres e crianças ocupavam a rua para protestar contra a falta de luz, que já durava dois dias. Eles diziam que não deixariam ninguém passar. Não foram agressivos, longe disso. Pareciam tão amedrontados quanto nós dentro do carro. Lembro que o motorista tentou forçar a passagem, jogando o carro contra o entulho, e que eu coloquei a mão em seu ombro, pedindo que parasse.

Bem ou mal, aquelas pessoas nos consideravam seus aliados. Acreditavam, provavelmente, que estávamos ali para cobrir o evento deles. Mas eu não exerci o meu faro de repórter nem vislumbrei ali uma matéria de capa. Enxerguei apenas uma das faces de uma desgraça cotidiana que não respingava em meus pés. Fiquei paralisado, observando os rostos no escuro, rostos negros com olhos enormes que evocavam raiva, impotência e desespero. Até que enfim demos meia-volta e percorremos um caminho ainda mais longo.

Chegamos tarde, já no terceiro ou quarto show, não lembro agora. Entramos e me deparei com uma banda cantando para uma multidão ensandecida. Aquilo tudo me parecia irreal. O som altíssimo, as pessoas se esbaldando e, pairando sobre tudo, muita luz. Megawatts para dar e vender. Telões de alta definição e holofotes superpotentes permitindo a todos ver a si mesmos com absoluta nitidez.

Não lembro do que escrevi no dia seguinte. Certamente alguma matéria frívola celebrando a diversidade de ritmos do festival. Não acrescentei nenhuma linha sobre o episódio da Estrada Velha e devo ter comentado com poucas pessoas o que tinha acontecido. Afinal, aquele não era o meu mundo, nem aquela era a minha pauta. Estava lá para escrever sobre um evento musical e escrevi. Logo poderia voltar aos textos sobre filmes e livros de que tanto gostava.

Aquelas pessoas prosseguiriam no mais absoluto anonimato, como continuam até hoje, numa cidade em que um terço da população vive em favelas e o segundo terço habita construções precárias em bairros distantes. O que posso dizer? Que fui covarde? É claro que fui covarde. Poderia, evidentemente, ter feito algo: saltado do carro, ouvido as pessoas, anotado suas declarações, entendido suas motivações para, ao final, escrever uma reportagem séria, como um repórter de verdade.

Espero que esse relato tenha ao menos servido de lição para os futuros jornalistas com quem conversei. Ao final do encontro, uma aluna conversou rapidamente comigo, perguntando qual conselho eu daria a quem está começando. Lembrei de uma frase do filme Quase Famosos, de Cameron Crowe, dita por um velho mestre do jornalismo ao deslumbrado repórter iniciante da revista Rolling Stone, que circulava em turnê com uma grande banda de rock: “Seja honesto e impiedoso”. Mas talvez, em algumas situações, o conselho certo deva ser: “Seja honesto, mas também piedoso”. Como não fui naquela noite.

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