Por uma dessas artimanhas da memória, as viradas de ano mais marcantes para mim sempre foram as mais desastradas. Na orla da cidade, esperando Adal chegar com uma garrafa de sidra barata, sempre irresistivelmente atrasado e livre. Quase meia noite já e tocava It Ain’t Over ‘Til It’s Over, de Lenny Kravitz numa barraca de praia.
Tudo estava no começo bem ali e essa era a beleza. Vivíamos o roteiro de nossas vidas juntos numa Salvador que mais parecia cenário de filme, com trilha sonora roubada de outros lugares. A música vinha de toda parte na orla da cidade e nos envolvia, deixando rastros nessa saudade mnemônica. Como era gostoso ser, como era simples.
Sem acesso a festas elegantes, com os pés enfiados na areia, pouco dinheiro no bolso e o resto do ano novo pela frente. Apenas garotos, um casal de idosos diria se nos visse. Éramos artistas amadores que nunca chegariam a Robert Mapplethorpe ou Patti Smith. Mas não sabíamos disso e, então, tudo em nós era potência de futuro.
Havia uma força indescritível em existir, entre projetos de romances, peças de teatro, poemas, filmes. Todos em processo. Papeis amassados nos bolsos, onde anotávamos o começo de um livro, um verso, o desenho de um set, coisas que jamais sairiam dali. Perdemos grandes ideias naqueles dias, e daí? Dávamos de ombros.
O que é meu, de verdade, é tudo aquilo que perdi. O vento soprando a maresia em nossos rostos de antes dos 20, meu amigo com ares de dândi, uma echarpe fora de lugar na estação mais quente em volta do pescoço. E como ríamos de nós mesmos, sem destino certo, dentro da noite, pulando sete ondas e todos os protocolos.
Tempos depois, em um dezembro roto e que parece nunca ter chegado ao fim, eu estaria visitando Adal num hospital. Subi ao sétimo andar com receio de ter que falar alguma coisa. Graças a Deus, ele estava dormindo. Fiquei ao lado da cama, observando seu semblante único, meu adorável São Selvagem, quieto em seu sono.
Não sei quais sonhos ainda seguem vivos, em qual destino aguarda o inesperado. Se errei, se fui muito covarde. Só sinto que o verão do primeiro dia do ano ainda guarda tudo que somos. É por isso que lhe dedico o amanhecer. E o meu pensamento mais sincero e mais ingênuo, aquele que me fez acreditar que éramos eternos.