2022 foi um ano de perdas imensas.
Foi um ano em que perdemos Elza Soares e Gal Costa. Cantoras absolutas.
Perdemos Erasmo Carlos. Jô Soares. Nélida Piñon, Pedro Paulo Rangel, Arnaldo Jabor e Rolando Boldrin.
E, agora, Pelé.
Teve mais gente, e todo ano é sempre eleito como o de maiores perdas dos últimos tempos.
Eu não me arriscaria a dizer que 2022 foi o pior, mesmo tendo nessa lista algumas das melhores pessoas do mundo em sua área. E o melhor do mundo de sempre; o rei do futebol.
Mas dar adeus a 2022 por ter sido um ano que levou muita gente me parece estranho.
Talvez, eu pudesse dar adeus a 2022 porque foi o ano em que o mundo venceu a pandemia e o coronavírus. Mas, infelizmente, não é verdade. Continuarão morrendo pessoas por vírus, bala perdida, ignorância, negacionismo, irresponsabilidade e intolerância.
Queria me despedir desse ano que passou deixando pra trás isso tudo.
Mas a roda do mundo gira e seguirá esmagando gente pela estrada.
Em 2022, vejam vocês, o século XX voltou a dizer que não está morto na absurda guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas nem dá pra se despedir. Seria um sonho, mas a guerra continua. As queimadas na Amazônia continuam. Viadutos e mais viadutos continuam sendo construídos e o aquecimento global segue firme a destruir com o mundo. Não dá mesmo pra se despedir de 2022 por conta de todos esses problemas. No máximo, torcer pela guinada que demos, no país, rumo a uma maior conscientização ambiental por parte do governo.
2022 escancarou um tipo de brasileiro que, desconectado da história e da realidade, resolveu pedir intervenção militar e acreditar em ameaça comunista. Deve ter sido a gente que acreditou, em 2018, em mamadeira de piroca e kit gay. Gente que resolveu confiar mais na notícia do whatsapp que em dados e provas concretos da imprensa e pesquisadores; ambos desqualificados como comunistas (risos) e mentirosos (ora, vejam, logo pelos que propagam fake news). E que confundiu liberdade de expressão com salvo conduto para propagar mentiras ofensivas e danosas à democracia, à honra das pessoas e ao bom funcionamento das instituições públicas.
Mas não dá pra me despedir de 2022 neste aspecto, porque as pessoas que saíram dos bloqueios de estradas e da frente dos quartéis continuarão com a cara no WhatsApp; na mesma lavagem cerebral.
2023 será um puxadinho do ano anterior, apenas pondo na oposição a dissonância cognitiva que incendiou parte do país. E tudo de ruim que o presidente fujão fez seguirá ecoando ainda este ano, enquanto cínicos darão um jeito de botar na conta dos outros a destruição que ele deixou. Mas ao menos o covarde antecipou o livramento de não tê-lo por aqui. Sabe deus até quando e o quanto nos livraremos deste surto de extrema direita que assolou nosso país, bem como voltaremos a conseguir conviver sem a tal polarização que só pesa à direita, mas prejudica a balança de toda nação, estremecendo familiares e amizades. Dá pra se despedir de 2022 com um peso desses nas costas?
Certa vez, numa entrevista, Carlos Heitor Cony foi provocado para se posicionar sobre algo do Brasil, e contou uma historinha, que era mais ou menos assim:
As bactérias todas estavam se reunindo, dentro de um corpo humano, pois havia a notícia de um novo antibiótico que provavelmente aniquilaria todas elas. Em meio à convenção, viram a bactéria mais antiga, mais experiente de todas, passando ao largo da manifestação. Foram lá perguntá-la se não haveria nenhum discurso, manifestação, algo que ela pudesse fazer, ao que ela respondeu: estou saindo na próxima mijada.
Chico Buarque, ao lançar sua canção Que Tal Um Samba, me deu um sacolejo. Ele segue sem querer sair na próxima mijada, sendo nome fundamental do país. Já não é mais tempo para lamentar. Agora, é juntar os cacos e ir à luta. Esconjurar a ignorância. Com um samba para espantar o tempo feio. Para remediar o estrago. E propõe: fazer um filho, que tal?
2022 me trouxe um filho.
Eu poderia me despedir do ano, mas o ano estará em mim como a marca mais indelével e marcante possível. E agora todo ano pra mim terá que ser melhor que o anterior, para ver crescer, criar um filho num bom lugar, numa cidade legal. Vou ter que cair pra dentro de qualquer “antibiótico”, até depois de ele criar casca e perder a ternura, depois de muita bola fora da meta. E tentar fazer de tudo para ele ser uma pessoa boa para o mundo. Que ele melhore o mundo, à sua maneira.
Há uma vida em mim e de mim que começa em 2022. Razão maior pra pensar em uma beleza pura no fim da borrasca.
A canção de Chico, e o meu filho, e a página infeliz da nossa história que viramos no dia primeiro de janeiro de 2023 (tentando deixar pra trás quatro anos sombrios de Brasil), as guerras, a natureza se degradando, talvez tenham como consequência a peça que estreio dia 6 de janeiro, no Teatro Martim Gonçalves.
Escrevi Fantasia de Guerra em meio a tudo isso que falei acima. Eu talvez esteja num momento diferente, torcendo por um momento diferente. E tocando nisso tudo, no espetáculo, sob uma outra e nova perspectiva. Tem um 2023 nascendo dentro de mim.
Sempre achei a histeria com a virada do ano algo exagerado. É só um dia novo que chega. E se não fizermos nada, ele não vai raiar como queremos.
Mas 2023 vem diferente, apesar de tudo.
Fiquemos com o coração pegando fogo e cabeça fria.
Façamos por merecê-lo.
E um feliz ano novo com mais tolerância, sabedoria, amor e paz.