O relógio mal tinha chegado às 8h na última sexta-feira (3) quando o primeiro disparo foi ouvido em Vila Verde, na região de Mussurunga, em Salvador. Desde então, quem vive por lá não tem sossego e perde as contas de quantos tiroteios já aconteceram. “Na sexta, foi tanto tiro que assustou. De sexta para sábado também teve e a mesma coisa na madrugada de domingo. Vila Verde virou um campo de guerra esses dias”, conta uma moradora que, por medo, não se identifica.
A Polícia Militar (PM) informa que os confrontos começaram após um homem ser morto em Colinas de Mussurunga. Um morador, que também opta por não revelar o nome, diz que a violência que veio de Colinas, então, se espalhou. “Está em todo lugar aqui de Vila Verde. Na invasão lá embaixo, nessa parte aqui de cima. Quando acontece, eles saem de tudo quanto é canto aqui da área”, fala, sem entrar em maiores detalhes para não ser visto conversando com a reportagem.
Os números do Instituto Fogo Cruzado, que monitora a ocorrência de violência armada em Salvador e Região Metropolitana, dão a ideia da gravidade do momento por lá. Desde quando o Instituto começou a mapear tiros, no meio do ano passado, houve dez tiroteios em Vila Verde e Colinas de Mussurunga. Desses, quatro aconteceram entre julho e dezembro de 2022. Os outros seis foram entre janeiro e esta segunda-feira (6). Dos números gerais, sete tiveram a disputa entre grupos criminosos como motivação.
Quem não consegue nem contar devido ao trauma e temor que se instalam depois das ocorrências, evita falar do que poderia ser o gatilho da escalada de violência dos últimos dias. “Não sei dizer o que é, moço. É coisa deles aí, a gente não pode sair falando porque é complicado e perigoso. Boca fechada não entra mosca, né?!”, diz uma outra moradora quando questionada pela reportagem sobre o que seria a motivação de uma alta repentina de tiros.
Guerra por espaço
Desde que as ocorrências começaram, o policiamento foi reforçado na área. O Major Valdino Sacramento, da Rondesp, que coordena as ações, afirma que o caso é mais um episódio ‘comum’ da briga entre facções. “É busca por poder e lucro, absorvendo as bocas de fumo. Se trata de uma estratégia de ‘mercado’, que nas facções é a eliminação dos rivais em disputas territoriais”, fala ele, resumindo a ação ao modus operandi dos grupos criminosos.
Tanto a Rondesp como outras forças de policiamento ostensivo vão estar na região até que o cenário se acalme. No entanto, a reportagem não viu viaturas em Vila Verde quando esteve por lá durante o dia. Uma moradora reclama da situação. “Três dias de bala e você não vê uma viatura aqui rodando durante o dia. Fica mesmo difícil porque eles estão se matando e, se não tiver ninguém que impeça, vão continuar fazendo isso aqui no bairro”, comenta.
Questionado sobre a presença da polícia, o Major Galdino afirma que o reforço se dá através de ‘ondas’, onde a polícia entra e sai de Vila Verde em momentos prioritários. “A gente intensifica a segurança com patrulhamento tático. […] São horários variados de ronda. Entre 1h e 3h, por exemplo, estamos sempre presentes porque é um horário em que as facções se movimentam. A depender da situação, fazemos entre 20h e 23h, mas isso pode variar”, informa o Major.
Na última sexta-feira, em uma dessas rondas, cerca de 30 suspeitos foram encontrados no bairro armados e entraram em confronto com a polícia. Cercados, os homens fugiram por um matagal que existe na região. Nenhum agente da Rondesp ficou ferido durante a ação.
Confronto contínuo
De meados de 2020 para cá, os casos de disputas violentas por territórios entre facções se acumulam. Cenário que começa a aparecer quando a facção Comando da Paz, criada em 2007 no Presídio Salvador, se transformou em um espécie de ‘célula’ da segunda maior organização criminosa do país, o Comando Vermelho (CV).
Nesse movimento, bairros como Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas, Plataforma, Rio Sena e Alto da Terezinha, antes dominados pelo CP, passaram a ser do CV. A facção, porém, tenta avançar e cooptar territórios dominado pelo Bonde do Maluco (BDM), outro grupo criminoso.
A medida que as disputas acontecem, os tiroteios e as mortes também se acumulam. Segundo informações do Fogo Cruzado, ao longo do segundo semestre de 2022, Salvador e RMS tiveram mais mortes em trocas de tiro do que a região metropolitana do Rio de Janeiro: enquanto naquele município houve 1.758 tiroteios, 484 mortos e 565 feridos, na capital baiana aconteceram 753 tiroteios, com 499 mortos e 164 feridos.
Dentro dessa gama de tiroteios, exemplos não faltam de casos ocasionados por disputas entre facções. Em julho de 2022, o bairro do Rio Sena, de domínio do CV, registrou 15 dias de trocas de tiros entre grupos armados. De acordo com moradores, a disputa era entre traficantes do bairro e rivais de Mirantes de Pirajá, que é uma área dominada pelo BDM.
Mais cedo, em maio do mesmo ano, Valéria viu os mesmos grupos protagonizarem dias de guerra com relatos de tiroteios de cerca de duas horas de duração. O motivo era justamente o domínio do território, estratégico para escoamento de drogas e armas pela BR-324. Fazenda Coutos, bairro que é campeão em tiroteios e é dominado pelo BDM, lidera a estatística por conta dos confrontos entre estes grupos. Dos 27 tiroteios registrados lá no último semestre do ano passado, 18 são fruto dessa guerra.