Foto: Reprodução/O Cruzeiro |
Brasil, esfriai vossos pandeiros, afinal, é findo o Carnaval, e começou aquela parte chata que se estende até o Natal, com um ligeiro alento no São João. Os três grandes marcos temporais de todo bom baiano(a) não são as estações (até porque faz calor o ano inteiro), mas as três festas que fazem a gente se preparar de uma forma especial para celebrá-las. E a trilha sonora dessas datas possui um nome em comum: José de Assis Valente, compositor e protético soteropolitano que completa 65 anos de “adeus” no próximo dia 6.
Sua morte – é triste dizer isso – foi resultado de muita persistência: tentou se matar cinco vezes, uma delas após se jogar do Morro do Corcovado, no Rio, salvo por um arbusto. Nessa não conseguiu, mas uma hora o projeto foi concluído com sucesso. Sua vida – também é triste contar – foi uma sucessão de desencontros, desarranjos e desilusões desde a mais tenra infância, embora sua obra tenha plena inspiração e lampejos de felicidade.
São 155 sambas gravados pelas maiores vozes do Brasil, a exemplo de Carmen Miranda – só ela gravou 25 –, além das marchinhas, que marcaram um estilo próprio e pioneiro, como destaca o escritor baiano Gonçalo Junior, autor da biografia ‘Quem samba tem alegria – A vida e o tempo do compositor Assis Valente’ (Civilização Brasileira, 2014).
“Assis participou do primeiro concurso de marchinhas juninas, em 1933, que ele ficou em sexto lugar com ‘Cai, Cai, Balão’, gravado maravilhosamente por Aurora Miranda com Francisco Alves. E o coro é formado por ninguém menos que Carmen Miranda, Mário Reis e o próprio Assis Valente, com Pixinguinha ao piano, arranjo deste. Você consegue imaginar esses monstros gravando uma música só, uma marchinha de São João?”, diz Gonçalo. Não consigo.
Carmen Miranda gravou 25 músicas de Assis Valente (Foto: Reprodução/O Cruzeiro) |
Pai da melancolia do samba
Foram as marchinhas, aliás, que primeiro tornaram Assis Valente um ás da música popular, mesmo quando os concursos eram para o período natalino. “Eram um modismo na época. Os concursos davam muito dinheiro e ele participava bastante, e o mercado fonográfico também pedia marchinhas. Só que Assis era melancólico, depressivo”, complementa, dando a pista da marca impressa por ele na maioria das canções.
Está lá, por exemplo, no final da maior música de Natal já feita no Brasil, ‘Boas Festas’, quando diz: “Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem”, aquela que começa com “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”.
Filho bastardo do herdeiro português Antônio Teodoro dos Santos com a empregada doméstica Maria Esteves, Assis teve uma infância conturbada, que se estendeu e perdurou durante toda a vida adulta.
Apesar de, pessoalmente, ser triste e depressivo, quis o destino que tivesse o tino para cuidar de sorrisos. Primeiro, com canções como ‘Brasil Pandeiro’, regravada pelos Novos Baianos com estrondoso sucesso, avisando que chegara “a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor”, ou mesmo ‘Alegria’, que lembrava que a nossa gente “triste e amargurada inventou a batucada pra deixar de padecer”.
Não bastava, e cuidou de fazer as pessoas sorrirem bem também de outra forma, atuando como protético.
Lendas
Até se tornar ajudante do padrinho dentista, fazendo próteses em seu começo de vida adulta, no Rio, foi longo e controverso o caminho percorrido por Assis Valente aqui na Bahia. Primeiro na saída de Salvador, ainda bebê, já que sua mãe acabou demitida por conta do relacionamento com o patrão – a versão de que ele é nascido em Santo Amaro é contestada por Gonçalo Junior.
“Uma (meia) irmã dele me contou que Assis tinha nascido na Rua do Carro, no Campo da Pólvora, na casa da própria família branca, onde o pai dela engravidou a mãe de Assis. Por o menino ser um filho bastardo, a empregada foi mandada embora. Ele então foi levado pelo padrinho, que era um dentista, amigo do pai dele, branco, e que criou ele em Alagoinhas. Esse mesmo dentista que vai acolher ele no Rio”, detalha Gonçalo, que teve contato com diversas fontes primárias em seu trabalho para reconstruir o passado do compositor.
O biógrafo também questiona outras versões ultra disseminadas sobre o compositor: “Na Bahia, tentou-se criar uma biografia de Valente de menino prodígio, que declamava versos inteiros com pouca idade. Há muitos mitos. O rapto de Assis [quando criança] é lenda urbana, assim como a história do circo [com o qual teria fugido], ou dele ser homossexual. Tem muita história inventada”.
Vindas e idas
Já mais moço, Assis Valente volta a Salvador, e passa a conviver com o pai por um tempo, até Teodoro descobrir que o rapaz estava usando maconha. “Isso foi em 1927, o que teria levado o pai dele a expulsá-lo de casa. Aí ele vai para o Rio tentar ser cartunista. Ao chegar para procurar o padrinho, e tentar arranjar um emprego, é atropelado, vai pro hospital, fica lá sem memória durante um tempo”, pois tragédia pouca é bobagem.
A memória volta, o sucesso começa e sobe para a cabeça. Segundo Gonçalo Junior, o compositor passa a levar uma vida paralela, se tornando um inveterado consumidor de cocaína. É esse vício que destrói seu casamento e suga todo o dinheiro que ganhava como um dos grandes nomes da composição daquele tempo, só rivalizando com Noel Rosa, que o antagonizava com composições bem humoradas.
Risonho em fotos, o bom humor de Assis Valente estava apenas na superfície. Na vez em que tentou suicidar, pulando do Corcovado, deixou bilhetes se explicando, não queria ninguém sentindo culpa. Na quinta e última tentativa, sentado numa praça, talvez de camisa listrada, conseguiu separar-se da vida, mas não da história nem da memória afetiva de quem o ouve e canta nos momentos mais felizes do ano, todo ano, todo ano.