É difícil precisar a origem do carnaval no mundo – estudo que nos levaria às celebrações das civilizações antigas ou, pelo menos, às tradições festivas da Idade Média. No Brasil, por sua vez, podemos dizer que o carnaval, historicamente, nasce em Salvador, desenvolvendo-se sob a mestiça influência das comemorações íbero-barroco-católicas, indígenas e africanas, ao tempo em que expõe a complexidade e as contradições do sonho coletivo de liberdade e ocupação das ruas (FANTINEL; MIGUEZ, 2022).
Entre as tradições que marcam a recepção da festa na cultura baiana, destacam-se a celebração portuguesa do entrudo, não raro violenta e conflituosa, bem como a sátira política dos cucumbis, legado relacionado à forte influência do povo Banto.
No Entrudo, “os festejos consistiam basicamente na invasão de uma casa por famílias de amigos ou vizinhos, o que ocasionava ‘combates’ nos quais as armas utilizadas eram cinzas, farinha, lama e água, muita água para ensopar as pessoas”, já as celebrações do grupo de negros mascarados, denominados ‘cucumbis’, era marcada pelo uso de instrumentos musicais, máscaras e fantasias para satirizar o modo de vida povo branco europeu. (OLIVEIRA, 1996).
Portanto, entre os “barões famintos” e “napoleões retintos” cantados por Chico Buarque, a troca de papéis é um traço que acompanha a origem histórica do carnaval na Bahia – “negros vestidos de nobres, homens travestidos de mulher, geralmente prostitutas ou noivas, pretas africanas carregadas em cadeira de armar eram personagens constantes na crítica e inversões dos entrudos baianos”. Podemos dizer que, de certo modo, a ironia popular contida nas representações da sociedade branca-senhorial-dominante, inclusive através das personagens travestidas de mulheres, encontrava o seu sentido e legitimidade ao contestar a falsa moral dominante da época (FERREIRA FILHO, 1999).
Desde os antigos entrudos e cucumbis que dão origem ao carnaval baiano (e brasileiro!) de séculos passados, a celebração manteve-se enquanto uma festa de rua – avenida onde passado e presente se encontram, desde as antigas e ainda não superadas disputas, até as recentes conquistas que já nos permitem referir um “novo tempo” em construção. Dentre os acontecimentos recentes do carnaval de 2023, um merece, nessas breves linhas, especial destaque: uma mulher cercada por um grupo de homens travestidos de mulher do bloco “As Muquiranas”, tentando livrar-se de ataques feitos com “armas de brinquedo”.
Se, no passado, a inversão de papéis feita por homens travestidos cumpriu (intencionalmente ou não) a função de questionar a moralidade dominante de castração da sexualidade feminina, hoje podemos afirmar que os foliões travestidos se distanciaram, por completo, desse olhar político-satírico. Não cumprem função social alguma, ao contrário, servem ao reforço de estereótipos cisheteronormativos e misóginos, com representações ridículas, vulgarizadas, objetificadas e estigmatizantes de nossos corpos.
São grupos discriminatórios, exclusivamente compostos por homens cisgêneros, que ganham as ruas para reafirmar o que já está obviamente posto: o fato de vivermos uma desigualdade entre os gêneros, lastreada em uma sociedade estruturalmente machista e racista.
Falar em “armas de brinquedo”, nesse contexto, é uma contradição em termos. O fato de os instrumentos de ofensa serem de plástico não lhes retira, em absoluto, o potencial lesivo – e não há brincadeira alguma em violentar alguém.
Os tiros disparados ferem a dignidade, a moral e mesmo a integridade física daquela mulher e, de alguma maneira, atravessam o meu corpo e o de tantas outras mulheres, bem como de pessoas LGBTQIAPN+, pois somos alvos preferenciais de tais algozes. Falemos, portanto, apenas “armas”, pois é do que se tratam – a nocividade irá variar conforme o material utilizado em seu fabrico. E, como todo e qualquer revólver, servem, por excelência, ao objetivo de ferir, seja física ou simbolicamente. E, como tal, devem ser alvo de imediato controle por parte de nossas autoridades públicas nos portões de acesso ao circuito oficial do carnaval.
O silêncio conveniente do Poder Público na restrição de tais práticas escancara o que já é presenciado desde os tempos mais remotos da história do carnaval baiano: o controle seletivo. Se, por um lado, é implacável com os ambulantes ou usuários de drogas ilícitas, por outro é complacente com os homens que se valem do pretexto da fantasia para violentar mulheres.
“OS Muquiranas” (e faço aqui uso do artigo correto, no masculino) são igualmente responsáveis, pois apesar de não ofertarem as armas aos seus foliões, eximem-se do ônus de proibir o uso do instrumento no interior do bloco, restringindo-se a campanhas e notas sabidamente inúteis. A nossa revolta diante do ataque covarde àquela mulher só não é maior que a nossa certeza de que dias melhores estão por vir – “se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu”, canta BaianaSystem abrindo as alas de um novo tempo e conclamando o contra-ataque por carnavais feitos de amor, igualdade e respeito.
Daniela Portugal (Foto: João Lins/Divulgação) |
*Professora doutora da Faculdade de Direito (UFBA) e Faculdade Baiana de Direito. Advogada feminista. Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB/BA.