“Tiro aqui não é novidade. A gente sabe bem, mas o que aconteceu hoje [na madrugada desta quinta-feira (06)] foram horas de balas, explosões e gritos que eu nunca vi na minha vida”, conta um morador, ao tentar descrever o confronto entre grupos criminosos que levou o terror para quem vive em Arenoso, localidade do bairro de Tancredo Neves. Os sons das rajadas de metralhadora foram ouvidas até nos bairros do entorno da Rótula do Abacaxi (leia abaixo)
A dimensão da ‘guerra’ entre as facções rivais ficou nítida no cenário encontrado no bairro logo pela manhã. Dois mortos, um deles esquartejado, paredes cravejadas de tiros, vidros dos carros com buracos de bala e incontáveis cápsulas de projéteis davam conta do que aconteceu horas antes. Os vestígios por lá, inclusive, mostravam quão fortemente armados estavam os protagonistas do conflito.
“O que localizamos aqui foram granadas de uso militar e um armamento pesado nas mãos dos criminosos envolvidos na disputa. Estamos falando de fuzis 556 e 772, armas que também são de uso militar”, explicou o Major Luciano Jorge, comandante da 23ª CIPM, que é responsável pelo policiamento na região.
Capazes de atingir um alvo a 300 metros de distância, as armas são de alto poder de fogo. Tanto é que o barulho assombrou quem estava próximo ao confronto e os ecos foram propagados até locais mais distantes. “Minha casa está toda furada. Meu filho pequeno passou a madrugada em casa chorando, eu só abraçado por cima dele para proteger. Eram tão altos os barulhos que os tiros pareciam estar dentro de casa e não na rua”, contou uma moradora, sem dizer seu nome.
Outro morador, que também não se identificou, afirmou ter tido casa e carro danificados pelos tiros. “A parede se estragou toda e o pior: eu deixo meu carro na frente. Estourou um dos vidros das portas e vou ter que arcar com prejuízo. Para trocar isso aí vai ser um gasto de uns R$ 300 a R$ 400, contando o material e o serviço lá na oficina onde eu vou”.
Além do dano material, houve prejuízo na rotina dos moradores. As ruas vazias pela manhã entregavam que boa parte das pessoas optou por permanecer em casa. Os colégios da região não tiveram aulas e os ônibus não passaram até o final de linha, obrigando quem mora na região a subir para o Arvoredo, outra localidade de Tancredo Neves, para pegar o transporte. A Secretaria Municipal de Educação (Smed) não confirmou quantos colégios foram afetados até a publicação desta reportagem.
Panela já fez parte do Baralho do Crime (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Dividido pelo tráfico
Enquanto os moradores perdem direito ao básico, a guerra se estabelece. Ainda mais porque, atualmente, Tancredo Neves é dividido entre as facções Comando Vermelho (CV) e o Bonde do Maluco (BDM). As localidades do Buracão e Beiru, que ficam mais a oeste, em direção ao Cabula, estão sob a atuação do CV. Porém, quem domina – ou dominava – o Arenoso, na região próxima ao Cabula VI, Doron e a Paralela, são os traficantes que fazem parte dos grupos liderados pelo BDM.
De acordo com o IBGE, Tancredo Neves tem mais de 50.416 habitantes. É o quinto bairro mais populoso da cidade, atrás apenas de Pernambués, Fazenda Grande do Retiro, São Cristóvão e Pituba. Para a polícia, porém, a intenção [dos traficantes] de anexar o bairro, não segue uma lógica demográfica e sim geográfica. A guerra desta madrugada foi mais uma tentativa do CV de avançar sua área de controle até dominar toda a cidade.
“Esses grupos criminosos têm atuação contínua no sentido de ampliar o seu domínio. É uma disputa de mercado, onde atuam com o tráfico. Estamos vendo um grupo querendo anexar essa área”, explica o Major Luciano.
Tanto é assim que o alvo principal do CV ao entrar em Arenoso eram as lideranças da área. Um destes é Jeobson Rocha Cruz, conhecido como ‘Panela’, uma das lideranças do tráfico de drogas e responsável pela segurança nas ruas. Ele foi esquartejado pelos rivais. Outro traficante também foi morto, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP).”[Panela] era um dos cabeças daqui. Ele era o cara da pista, quem vigiava e comandava os homens da região”, contou um morador que pediu anonimato.
Panela já fez parte do Baralho do Crime da Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), que cataloga os criminosos mais perigosos do estado, e foi preso em 2017 por homicídio qualificado. Era também o braço direito de Cleber dos Santos da Silva, mais conhecido como ‘Keu’, um dos criminosos mais procurados da Bahia, que foi preso em São Paulo no mês passado.
Neta quinta (06) pela manhã, equipes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), da Patamo, do Batalhão de Choque, da 23ª CIPM, da Rondesp Central e do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) realizam ações na região. Imagens de câmeras de segurança estão sendo analisadas e testemunhas estão sendo ouvidas pelas forças de segurança.
O patrulhamento foi reforçado por tempo indeterminado. A SSP orienta que informações sobre o confronto podem ser enviadas, sob sigilo, para o Disque Denúncia da SSP, no telefone 181.
Inscrições do CV foram pichadas em Arenoso (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Traficante mudou de lado
O segundo criminoso morto no embate da madrugada não teve a identidade revelada. De acordo com informações, o CV usou até drones para mapear a área antes de avançar com seus integrantes. Outra informação é que uma antiga liderança do BDM, que tem pleno conhecimento da área e das estratégias do grupo, se juntou aos rivais para tomar a região.
“A gente não fala o nome, mas tem uma liderança do BDM que ouviu o aviso da CV dizendo que todos iam rodar, que eles iriam derrubar cada liderança. Então, ele, que era homem forte dos caras, mudou de lado com a promessa de ser gerente do negócio por aqui”, conta um morador, que não se identifica por medo de retaliação.
Após a noite de confronto, as paredes de casas, colégios e outros imóveis do Arenoso apareceram com inscrições que fazem referência ao CV como ‘TD.2’ [Tudo Dois, gíria para está tudo dominado]. Apesar disso, não é possível afirmar que a localidade já passou para o domínio do grupo. Pelo contrário, há quem diga que a história não está acabada.
“Quando um cabeça morre, nunca fica por isso mesmo. Sempre há vingança quando matam os líderes deles que estão aqui. Não duvido nada de que vai haver mais tiroteios nos próximos dias. Quem é daqui já sabe que precisa ficar alerta. Principalmente, na parte da noite”, afirma um morador.
Rajadas foram ouvidas na Rótula
Por volta das 3h da madrugada desta quinta, moradores do Horto Bela Vista, Vila Laura e outros bairros que circundam a Rótula do Abacaxi ouviram os sons abafados das rajadas de metralhadora, tiros de fuzil e explosões da guerra do tráfico que acontecia em Tancredo Neves.
A geografia da região da Rótula, que é um espaço bastante aberto e amplo favorece a propagação do som e conflitos nessas localidades costumam ecoar na área.
Em grupos de WhatsApp de moradores do bairro, ontem pela manhã, vizinhos comentavam dos tiros e, aqueles que já tinham acessado as primeiras notícias em sites e telejornais, atualizavam os demais sobre a situação em Tancredo Neves.
“Me senti no Rio de Janeiro, onde dá para ouvir aqueles confrontos que ocorrem nos morros de lá. Foi assustador”, comentou uma moradora da Vila Laura em um desses grupos de WhatsApp.
A SSP não informou quantos policiais estão envolvidos no reforço do policiamento em Tancredo Neves, mas acrescentou que há agentes da Rondesp, Patamo e Operações Gêmeos e Apolo.