Após o fim da ditatura militar, deixamos de estudar a história decorando datas ou a geografia recitando afluentes de rios. Escolas começaram a ensinar processos de continuidades e rupturas, disputas políticas e as perspectivas dos derrotados nas guerras. Os alunos poderiam enxergar como as disciplinas interferem umas nas outras.
A resposta foi uma onda de “guias politicamente incorretos” de tudo. O objetivo era dizer que os professores ensinavam errado, porque tinham “viés ideológico”. Os “erros” apontados eram sempre abordagens positivas aos perdedores das guerras. Zumbi não foi herói. Os bandeirantes não matavam tantos índios, etc.
Começou uma cruzada contra o saber, contra a experiência e contra o conhecimento. Ser rebelde era exaltar a própria ignorância. O que importava era lacrar. O humorista que se gabava de ser “o pior aluno do mundo” chamava Paulo Freire de estelionatário, mesmo sem lê-lo. Acusavam-se os outros de terem ideologia, pois neutra seria a política da louvação do incorreto.
Essa militância dizia “ser contra tudo que está aí” na política partidária. Nenhum parlamentar, governador, ou presidente prestava. Mas, também a arte era transgressora demais. A nova rebeldia era o conservadorismo. Pessoas que se diziam liberais atacaram exposições em museus e artistas consagrados. O que precisávamos era da mediocridade.
A luta contra o conhecimento não podia poupar o seu lugar natural. A escola e os professores também viraram alvos. Veio o movimento “Escola Sem Partido” e os professores viraram alvos. “Constranja a sua professora comunista e enfrente a ditadura do politicamente correto”. Aliás, “por que as famílias não teriam a liberdade de educar seus filhos em casa?”.
O que se queria é o direito de cada um criar seus próprios fatos. Os grupos de WhatsApp e outras redes aumentam a circulação das notícias falsas e lucram com isso. O jornalismo se tornou alvo quando tentou denunciar as mentiras. Nunca tivemos tanta informação, mas nunca fomos tão mal informados. Muita gente acredita em mamadeiras de piroca ou terra plana. Perdemos a capacidade de dialogar porque não temos mais uma base comum de dados.
Todas as políticas sociais e as tentativas de distribuição de renda passaram a ser vistas como nocivas. O público e o gratuito passaram a ser duramente combatidos. Quando se acha que mediocridade é virtude, os mais ignorantes passam a defender a meritocracia mais descontrolada, porque afinal pensam ser o topo da pirâmide.
O politicamente incorreto venceu. Tivemos um presidente famoso por defender a ditadura e por atacar todos os historicamente oprimidos, especialmente homossexuais, pobres e mulheres. Negava a cultura e a ciência. O poder sem conhecimento somente se exerce pela violência, pelo medo do outro e pelo caos. O símbolo do politicamente incorreto no poder é a adoração de atos de força. “Meu revólver minha vida” é o programa principal.
A cruzada contra o conhecimento nos trouxe ao cenário atual. Os “sem partido” entraram na política partidária. Temos parlamentares inquirindo ministros com base em correntes do zap e praticando transfobia vestindo perucas no plenário. Vimos deputada correndo armada no centro da cidade e líder de partido jogando granada na polícia.
A política foi invadida por uma turma menos madura que a 5ª série. Vieram consequências graves: Temos a menor taxa de vacinação das últimas décadas. A reforma do ensino médio trata o estudo da filosofia como luxo desnecessário. Temos professores aposentados recebendo menos que um salário mínimo. Temos, ao mesmo tempo, mais gente armada e mais gente odiando escolas e professores.
Foi assim que importamos dos EUA os massacres em escolas. Aí, nas redes sociais são espalhadas mentiras para criar terror e incentivos aos ataques. O Twitter afirma que isso é liberdade de expressão. Os adversários do conhecimento e das pautas progressistas, entre algum ataque ao STF e um devaneio contra o comunismo imaginário, protestam contra qualquer tentativa de regulamentar as novas mídias.
Não precisamos treinar professores para a guerra, nem cair na armadilha do pânico. Devemos é voltar a respeitar o saber. Nossas crianças estão morrendo porque os adultos são politicamente incorretos.
Rafson Ximenes é Defensor Público