O médico obstetra Carlos da Costa Lino tinha planos de colocar uma peruca e se maquiar só no próximo final de semana, quando participará, pela primeira vez, da Parada LGBT+ em São Paulo. Tudo mudou na tarde de domingo (4), quando o plantonista do Hospital da Mulher, em Feira de Santana, se montou para atender uma paciente grávida, que proferiu ofensas homofóbicas contra seu amigo Phelipe Balbi Martins, médico ginecologista da unidade.
A atitude inusitada para defender o amigo pessoal e colega de profissão só foi possível porque os caminhos trilhados por Carlos, desde a infância, tornaram-no corajoso. Criado sob uma educação rígida em que a heterossexualidade era obrigação, enfrentou um longo caminho de opressões e inseguranças até assumir seu nome artístico, Diamann Nefer, e fazer performances como drag queen. Tudo isso enquanto concilia a carreira de obstetra, já tendo sido diretor de duas unidades hospitalares ao mesmo tempo.
Em comum, além da orientação sexual, os amigos Carlos e Phelipe dividem a paixão por Ivete Sangalo, a profissão e as dores de serem alvo de preconceito. Nenhum dos dois havia enfrentado situação semelhante dentro do ambiente de trabalho, mas, fora dele, a homofobia é recorrente.
“O preconceito é algo comum, que a gente vivencia todos os dias. Eu uso a minha voz como médico para reivindicar os direitos de toda uma comunidade que não tem oportunidade de cobrar o respeito”, diz Phelipe Balbi.
Enquanto crescia, Carlos da Costa enfrentava dilemas a todo momento. De um lado, se sentia seguro para compartilhar suas fragilidades e desejos com sua mãe. Já na casa do pai, também médico, precisava manter a postura de homem hétero e esconder sua orientação sexual. Diversas vezes ele precisou sair de casa para não enfrentar a figura paterna, com quem não possui contato até hoje.
“Eu vivia em no mundo sem nenhuma perspectiva, não era feliz e questionava muito a minha existência. Mas eu sabia que precisava sobreviver para ter dinheiro e ajudar minha mãe e construir minha família”, conta. Escolheu a Medicina como profissão e se formou em uma faculdade em Minas Gerais. A volta para a Bahia se deu quando passou na residência, em Feira de Santana, onde mora até hoje.
Carlos da Costa trabalha no hospital há 12 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Com o passar dos anos, ficou impossível deixar a veia artística de lado, e Carlos, que subiu em um palco pela primeira vez aos 4 anos na Igreja Universal, se tornou a figura irreverente que é. Nem sempre é tarefa fácil reconhecer quando uma virada de chave acontece nas nossas vidas, mas um momento nunca vai sair da memória dele. Há alguns anos, participou como modelo da campanha de uma marca de joias da França. Ao receber o convite, sentiu a segurança que tanto lhe foi tirada na juventude.
“Pela primeira vez, eu tive autoestima. Até então, eu não sabia o que era isso, eu só sobrevivia. Eu era aquela criança que não saía para o recreio, que tinha medo do preconceito”, diz.
No Carnaval deste ano, se vestiu de Ivete Sangalo e, por intermédio de amigos, conheceu a cantora. Na Micareta de Feira, em abril, subiu no trio elétrico de Ivete como drag queen. Foi o nascimento público de Diamann Nefer, nome criado a partir de consultas com uma numerologista. Poucas semanas depois da Micareta, foi convidado para participar da Parada LGBT+, que acontece na capital paulista no próximo domingo (11).
Enquanto se acostumava com os acontecimentos recentes e se dividia entre os quatro hospitais que trabalha em Feira de Santana, a vida de Carlos da Costa ganhou mais um capítulo inusitado. O seu “fogo altruísta”, como diz, o esquentou e ele não conseguiu ficar calado diante do ataque sofrido pelo amigo, Phelipe Balbi. Ao saber que uma paciente do Hospital da Mulher havia ofendido o ginecologista por conta da sua orientação sexual, colocou uma peruca e se maquiou para atender a mulher que ofendeu o colega.
“Eu fiz isso especialmente para atendê-la. Fiz isso para ela ver que uma pessoa homossexual pode atendê-la bem. Durante a consulta, ela chorou, conversamos e ela se desculpou”, relata. A amizade entre Carlos e Phelipe começou há cerca de três anos, quando o ginecologista voltou do Rio de Janeiro e começou a trabalhar no mesmo hospital que o colega.
Carlos Lino, com peruca e batom (Foto: Reprodução/Redes Sociais) |
Com tantos pontos de convergência, foi inevitável a aproximação entre os dois. A amizade é tamanha que os amigos vão viajar juntos para São Paulo, na quarta-feira (7). A peruca, que Carlos utilizou para atender a paciente, estava na casa da mãe de Phelipe quando o episódio de homofobia aconteceu no hospital.
Médico vítima de homofobia presta depoimento na delegacia
O ginecologista Phelipe Balbi Martins, vítima de ofensas homofóbicas por uma paciente, conseguiu registrar um boletim de ocorrência na manhã dessa segunda-feira (5), na 2ª Delegacia de Polícia do Sobradinho, em Feira de Santana. O médico tentou ser ouvido pela polícia no dia anterior, mas foi informado que o sistema da delegacia estava fora do ar. Diante da repercussão do caso, testemunhas devem ser ouvidas ainda esta semana. Phelipe também formalizou uma denúncia na ouvidoria do Hospital da Mulher.
Para Phelipe Balbi, o episódio ter viralizado é um indicativo da força dos movimentos sociais e uma forma de combater o preconceito. “Estou vendo a repercussão como algo positivo para que continuemos lutando pelos nossos direitos e exigindo respeito da sociedade”, afirma.
Phelipe fez a denúncia nessa segunda-feira, 5(Foto: Marina Silva/CORREIO) |
O episódio começou a repercutir nas redes sociais quando Carlos da Costa divulgou dois vídeos em que relatou que uma paciente disse para Phelipe que “não gostava de ser atendida por viado”. “Vivendo e vendo situações constrangedoras onde a gente menos imagina. Todos nós sabemos que homofobia é crime e imagina desacatar um profissional que esteja exercendo seu trabalho de forma digna e humana”, desabafou Carlos da Costa em uma das gravações.
Em nota, o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) repudiou o ataque sofrido pelo médico. “O Conselho ratifica que tomará todas as providências cabíveis e que continuará na luta pelos direitos humanos e contra a violência e o preconceito”, pontuou.
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu equiparar os crimes de homofobia e transfobia como racismo. Desde então, a homofobia se tornou crime inafiançável e imprescritível. A Lei nº 7.716/89 determina pena de um a três anos de reclusão, além de multa.
*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo