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Dilapidando o passado e a memória

Chove sobre Salvador e eu me embrenho na leitura do Arquipélago Gulag, o devastador relato memorialístico de Aleksandr Soljenítsyn sobre o terror nas masmorras do stalinismo. Milhões de pessoas, em grande parte inocentes, confinadas por décadas em campos de trabalhos forçados. Não é uma leitura fácil, mas sinto que é necessária. Porque preciso compreender as engrenagens que moveram o século em que nasci. Um século de enorme transformação social e florescimento tecnológico, mas que também elevou a brutalidade humana a um grau nunca visto.

Avanço pelas páginas como se caminhasse pelas estepes siberianas, com sua vegetação rasteira e sua neve quase eterna. Sinto enorme compaixão por toda aquela gente arrastada para o oblívio pela correnteza da Grande História. Estados totalitários me causam repulsa. Eles me remetem ao terror distópico de 1984, que li aos 15 anos, justamente no ano seguinte ao do título do livro. Orwell sabia das coisas. Não foi fácil para ele escrever sua obra maior. Mas nada que se comparasse aos percalços vividos por Soljenítsyn para dar vida às centenas de histórias paralelas do seu Arquipélago até conseguir publicá-lo.

É uma tarde fria de feriado e também aproveito o dia de ócio para escrever esta crônica, tentando dar corpo a algo que não sei bem o que é. Um desassossego indefinido, talvez motivado pela leitura do Gulag. No som, Bill Evans me enleva ao tocar Round Midnight e ao meu lado Pudim se refestela no chão. É meu pequeno companheiro de leituras e jogos de futebol. As mulheres da casa saíram e estamos sós na biblioteca. Fujo um pouco das redes sociais, onde a frivolidade impera e a inocuidade dos discursos de ódio me enfastia.

Leio que livros de eras passadas estão sendo reescritos ou dilapidados de seus trechos mais “delicados”, por não se adequarem aos valores da nossa época. É como se tentassem edulcorar a história do mundo a partir da literatura. Homens e mulheres do seu tempo julgados e condenados por terem escrito o que hoje se considera inaceitável. Vamos calá-los então? Vamos dilapidar o passado, a cultura e a memória? Nos tempos mais sombrios da União Soviética, Stálin mandava apagar dos registros os nomes de quem caía em desgraça. Até mesmo a imagem dos expurgados era suprimida das fotos. Guardadas as proporções, não estamos falando de coisas semelhantes?

Reescrever um livro se assemelha a submetê-lo a um procedimento de harmonização facial, que retira suas assimetrias e incongruências para torná-lo palatável. Mas também anódino e irreconhecível. Em entrevista recente ao programa Roda Viva, o escritor norte-americano Jonathan Franzen se disse frontalmente avesso a essas interferências. E avisou que não aceita ter as suas próprias obras profanadas no futuro. Franzen é um excepcional escritor, autor de romances caudalosos como Liberdade e As Correções, que discorrem sobre nossos temores mais íntimos e nossas fugazes conquistas cotidianas.

Fico imaginando os censores do futuro apontando “incorreções” na obra de Franzen e a mutilando, como fazem hoje com o britânico Roald Dahl, autor do clássico infantil A Fantástica Fábrica de Chocolate. Recentemente, o livro teve referências a gênero, aparência e peso dos personagens apagadas ou modificadas em uma nova edição, lançada na Inglaterra pela editora Puffin Books. É como se amputassem um membro da obra.

Já em alguns estados norte-americanos, milhares de obras estão sendo banidas de escolas e bibliotecas. Curioso é que o motivo, neste caso, não está relacionado a um identitarismo dogmático, mas sim ao oposto. Estamos falando da repulsa ao diferente, habitual nos discursos de extrema-direita. São livros cujo conteúdo aborda questões de gênero ou raça, com protagonistas negros ou personagens inseridos no universo LGBTQIA+. Em ambos os casos, parece evidente que a supressão total ou parcial de obras literárias é um ato deplorável.

Aqui do meu cantinho, ouvindo meu jazz e acariciando meu cão, eu pergunto: como devemos nos posicionar diante de tudo isso? Como ter um mínimo de lucidez e coerência quando o que se vê por todo lado são opiniões monolíticas, refratárias à discordância saudável e cada vez menos embasadas? Será que não aprendemos com os desmandos e arbitrariedades da Grande História? Será que obras maiores como Arquipélago Gulag não ensinaram nada? Ignoro as respostas

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