O mundo inteiro se lembra da surpresa internacional diante da destruição dos Budas de Bamyan ou dos mausoléus de Tombucto. Na Faixa de Gaza, na Cisjordânia ocupada e no Líbano, além dos mais de 44 mil mortos, as destruições e profanações de locais religiosos são massivas, e as reações são tímidas.
“Em Gaza hoje, Deus está sob os escombros”, afirmava em dezembro de 2023 o pastor Munther Isaac, de Belém. No início de outubro de 2024, um ano após o início da guerra, o ministério das Assuntos Religiosos de Gaza anunciou que 814 mesquitas haviam sido destruídas e 148 danificadas, e que três igrejas haviam sido aniquiladas no enclave sitiado. Entre esses edifícios, em dezembro de 2023, a famosa mesquita de Al-Omari, a maior e mais antiga mesquita do território, que já foi um templo romano e depois uma igreja, fundada há mais de 1.400 anos e com uma área de 4.100 m², teve seu minarete destruído algumas semanas antes.
Quanto à igreja ortodoxa de São Porfírio em Gaza, seu anexo foi derrubado já em outubro de 2023. Era a igreja mais antiga ativa na cidade. Construído em 1150, esse local de culto grego ortodoxo, que abrigava o túmulo do antigo bispo de Gaza, Porfírio, canonizado por ter cristianizado a cidade no início do século V, tornou-se um local de refúgio para os habitantes de Gaza. O patriarca ortodoxo de Jerusalém qualificou o ataque como um “crime de guerra”, lembrando que as igrejas servem de abrigo “para proteger cidadãos inocentes”. A ONG americana Justice For All apresentou no final de abril uma petição à Corte Penal Internacional (CPI) para que o bombardeio da igreja de São Porfírio fosse reconhecido como um “crime de guerra”.
No Líbano, durante o último ano, mas especialmente em outubro e novembro de 2024, o número de locais religiosos destruídos ou danificados pelo exército israelense aumentou, com mais de trinta mesquitas bombardeadas.
Em 16 de novembro, Israel dinamitou o santuário xiita da cidade de Chamaa, atribuído ao apóstolo cristão São Simão; um local do século XI, venerado pelas comunidades xiitas e cristãs. Bombardeios no bairro cristão de Haddad, ao sul de Beirute, afetaram, entre outros, o Hospital São Jorge e uma igreja. Na entrada do templo de Baalbek, as igrejas maronita Saydet al-Mounet e ortodoxa Mar Gerios também foram danificadas durante os bombardeios.
No deserto de Negev, o exército israelense também expulsou uma comunidade beduína de seu vilarejo no mês passado e destruiu tudo o que pôde, incluindo uma pequena mesquita.
Em todo lugar, a lista de destruições cresce. “Quando temos um lugar para a adoração de Deus, para a veneração, isso é algo bom para a humanidade”, testemunha Hanna Rahme, bispo maronita de Baalbek. “Se bombardeamos esses locais, é o desarraigo de uma sociedade, de uma civilização ou de uma comunidade. Isso é muito perigoso. Não podemos aceitar o que acontece no Líbano ou na Palestina. Israel vai além de tudo”.
Profanações múltiplas
Muitos cemitérios foram profanados nos últimos quatorze meses em todos os lugares onde os soldados israelenses atuaram. Os edifícios sagrados não ficaram de fora. Em meados de 2024, por exemplo, soldados israelenses se filmaram profanando a mesquita Bani Saleh, ao norte da Faixa de Gaza, e rasgando exemplares do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Outro exemplo em dezembro do ano passado: imagens mostravam soldados israelenses dentro de uma mesquita no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada, usando os alto-falantes para recitar o Shema Yisrael, uma oração central do judaísmo. No final do vídeo, risadas são ouvidas enquanto as tropas saem da mesquita e uma canção de Hanukkah é tocada, também pelos alto-falantes. Um comportamento que “pode levar a região a uma guerra religiosa”, afirmou o porta-voz da presidência palestina, Nabil Abou Roudeina.
Em Hebron, em setembro de 2024, a agência de notícias Wafa relatou que uma centena de colonos profanou a mesquita dos Patriarcas da cidade velha, fazendo danças talmúdicas ao som de música alta, tudo sob a proteção do exército israelense.
No Líbano, em novembro passado, soldados se filmaram simulando um ato sexual e zombando da Santa Virgem em uma igreja do sul do país.
Apagar todo e qualquer vestígio de cristianismo e islamismo
“Acho que a questão não é tanto religiosa, mas sim nacionalista, histórica”, analisa o historiador Bernard Heyberger, especialista em Oriente Médio. “Há na direita ou extrema direita israelense a vontade de mostrar que o território é judeu desde os tempos da Bíblia, que há um tipo de antecedente. É uma legitimidade fundada na história. Se apagarmos os monumentos religiosos dos muçulmanos e cristãos, é uma forma de afirmar mais fortemente a legitimidade judaica sobre o território.”
Lembrando que, em 1974, Yasser Arafat declarou na tribuna da ONU: “Lutamos para que judeus, cristãos e muçulmanos possam viver na igualdade, gozar dos mesmos direitos e cumprir os mesmos deveres, sem discriminação racial ou religiosa”.
Em 30 de novembro, o ministro israelense de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, ordenou à polícia que confiscasse definitivamente os alto-falantes das mesquitas que violassem a “lei Muezzin”, que desde 2017 proíbe o uso de alto-falantes para os chamados à oração tarde da noite e ao amanhecer.
Locais protegidos pelo direito internacional
Israel destrói os locais religiosos, mas também uma grande parte do patrimônio, alegando que esses locais são esconderijos de membros ou arsenais do Hamas ou do Hezbollah. O fato de atacar locais religiosos é, no entanto, considerado um crime de guerra de acordo com o direito humanitário internacional, especialmente a Convenção de Haia de 1907 e a Quarta Convenção de Genebra de 1949.
“Não sei onde está a moral, a consciência moral da comunidade mundial, das Nações Unidas”, questiona o bispo de Baalbek. “Não é permitido deixar Israel destruir assim.”
Em 24 de março de 2017, o Conselho de Segurança da ONU adotou por unanimidade a resolução 2347 sobre a proteção do patrimônio cultural, incluindo a destruição de sítios e objetos religiosos.
“Há um ano ninguém levanta a voz para dizer ‘parem esta guerra’”, lamenta Mohammed Nokkari. “Quando se trata de lugares de culto para muçulmanos, fica-se em silêncio. O mesmo acontece com as igrejas. Mas quando se trata de atacar uma sinagoga ou outros locais de culto, levantam-se vozes e protestos. Há uma grande discrepância.”
Em 2016, o CPI condenou um jihadista maliano a nove anos de prisão por seu papel na destruição dos mausoléus de Tombucto. “Quando penso em Gaza, penso primeiro nas pessoas, antes de pensar nas ruínas”, insiste o historiador Bernard Heyberger. “Mas se destruímos monumentos, destruímos o testemunho de algo que existiu”.
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