
No coração da literatura brasileira pulsa uma ferida silenciosa, uma lacuna dolorosa que ressoa em cada esquina esquecida do mapa. Nós, escritores das periferias — da Bahia ao Amazonas — sabemos bem o que é ser vozes abafadas pela indiferença do eixo Sul-Sudeste. Essa é a realidade de muitos de nós: uma surdez sistemática que silencia nossas histórias antes mesmo que elas possam ser contadas.
O medo de expor essa realidade é palpável. Muitos de nós hesitam em compartilhar suas frustrações, temerosos de que suas palavras sejam interpretadas como ressentimento, prenunciando cancelamentos e barreiras ainda mais intransponíveis. Em um tempo em que se naturalizou a ideia de que toda crítica é um disfarce de interesses pessoais, é desalentador. Mas a pergunta persiste: em que consiste essa ferida?
Essa dor é uma expressão de um problema complexo e frequentemente ignorado. Incontáveis escritores iniciantes acreditam que o simples envio de alguns e-mails pode levá-los a grandes editoras. A ilusão de que publicações em editoras menores são meras rejeições de instituições maiores perpetua a desvalidade de suas vozes. O que nos é negado é até mesmo o direito a um “não”, e a frustração transformada em silêncio se torna um vácuo angustiante: nosso trabalho foi ignorado ou simplesmente nunca lido?
Um sumiço que nos condena à dúvida permanente: nosso livro foi recusado ou sequer foi lido?
A incerteza de não saber se nossas obras foram apreciadas é angustiante, ainda mais quando nos sentimos à margem do mercado editorial. Não falo apenas de uma negativa; a verdadeira violência está na ausência de qualquer comunicação. Para nós, até mesmo um “não” seria um passo para a validação, e não a humilhação. No entanto, a exclusão geográfica que enfrentamos se reflete não só nas editoras, mas também nas escolas. Professores comprometidos frequentemente se veem incapazes de apresentar autores locais, pois o que encontram nas livrarias são nomes consagrados, limitando o acesso dos alunos ao verdadeiro espectro da literatura nacional.
Esse apartheid cultural se revela cruel: a literatura que não brota do Sudeste é, muitas vezes, descartada sem consideração. Na Bahia, um autor só será celebrado se obtiver reconhecimento externo, como se a autenticidade de um trabalho dependesse da validação de São Paulo. Quando finalmente somos descobertos pelas grandes editoras, nos oferecem um papel limitado: ao nordestino, as crônicas do sertão; ao nortista, a magia da floresta. É uma violência sutil que reduz a riqueza de nossas narrativas ao exótico.
Mas, em meio a tudo isso, nos últimos anos, temos visto uma mudança. A demanda por vozes plurais — negras, periféricas, diversas — começa a romper barreiras. Iniciativas como feiras literárias que promovem a confluência geográfica estão abrindo espaço para uma nova narrativa. Celebrar esse avanço é necessário, mesmo que venha envolto em contradições. Como um raio de luz que atravessa uma fenda, cada autor que surge representa uma possibilidade renovada para a literatura brasileira.
Eu sonho com o dia em que lerão nossos livros não como curiosidade etnográfica, mas como parte indissociável do corpo literário nacional
Sonho com um futuro onde nossa literatura não seja buscada apenas para atender demandas de mercado, mas para explorar a essência da condição humana, em todos os seus matizes e contrastes. Cada passo que damos, cada obra que lançamos, é uma batalha pela resistência, pela visibilidade. Não podemos ser reduzidos a etiquetas de “literatura regional”. Queremos ser uma expressão plena da literatura brasileira, sem limites ou reducionismos.
Assim, seguimos avançando, embora lentamente. Cada livro que rompe os muros do silêncio nos aproxima de nosso verdadeiro destino. Acreditar que nossas histórias têm valor é a chave para transformar gavetas em trincheiras, e a resistência em uma vitória coletiva.
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