27 setembro, 2025
sábado, 27 setembro, 2025

A grande arte de Diogo Mainardi

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Sou amigo de Diogo Mainardi e, por isso, insuspeito para falar sobre o seu novo livro, que acaba de ser lançado. Explico: para mim, suspeito é quem não gosta dele e quem não admira a sua literatura.

Esqueça o livro tradicional: Meus Mortos é um autorretrato em fotonovela — isso mesmo, fotonovela —,  e Diogo elevou essa que é uma forma narrativa da primitiva indústria cultural, parodiada no Pasquim do amigo Ivan Lessa, ao nível da melhor arte. Da grande arte.

O autorretrato é o de um homem em luto: Diogo perdeu pai, mãe e irmão no espaço de oito meses e escreveu (ou montou) um livro para digerir a morte de uma família desintegrada ainda em vida, da qual é o único remanescente.

Felizmente, ele formou a sua própria, mulher e dois filhos, no outro lado do mundo, clã sólido que incorporou há três anos e meio um quarto membro, o cão Palmiro, que acompanha Diogo na fotonovela veneziana de busca dos quadros de Tiziano, ambos fotografados por Nico, o Mainardi caçula.

Por que Tiziano? Porque Diogo viu retratada nos quadros do pintor renascentista, um dos maiores do seu tempo, se não o maior, a única filosofia que realmente importa: a que nos ensina a morrer.

Tiziano viveu o Renascimento, testemunhou as guerras religiosas, experimentou a censura da Contrarreforma, pereceu vitimado pela peste — e vitimado pela peste contemporânea, a Covid, morreria também o pai de Diogo. O artista magnífico nasceu em um mundo e morreu em outro, bem pior.

Muito jovem, ele tornou-se o pintor oficial de Veneza; ainda jovem, era o retratista do imperador Carlos V, o monarca mais poderoso da Europa do século XVI. Os grandes do continente o disputavam; os santos também (eu iria a Veneza apenas para contemplar a Assunção da Virgem, na Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari). E foi assim que Tiziano ganhou, além de fama, fortuna.

Já velho, desiludido com a sua época e com a espécie, ele abandonou os pincéis para pintar com as próprias mãos o que interessaria a Diogo no seu luto, quase cinco séculos adiante: a degenerescência da carne, a bestialidade do sexo, a impiedade do poder, o desespero com a finitude, a indiferença da morte à transcendência que costumamos atribuir a ela.

É a arte desse pintor com antes e depois que Diogo disseca, em balões de fotonovela: os quadros de Tiziano, os detalhes dos quadros de Tiziano, os quadros dos discípulos de Tiziano, os detalhes dos quadros dos discípulos de Tiziano — e a família fabricante da vacina contra Covid que comprou um Tiziano.

O flamengo Rubens é o díscipulo mais fiel do artista italiano. “Tiziano é Deus e Rubens é seu profeta”, diz Diogo, no final da busca consolatória, do aprendizado da morte proporcionado pelo pintor divino, cuja lição é esta: aprender a morrer é despir a vida de tudo o que lhe é essencialmente alheio, como as projeções fantasmagóricas que lhe emprestamos, principalmente as de nós mesmos.

Aprender a morrer é aprender a viver em nossos contornos, ainda que no outono da existência.

O aprendizado começou com A Queda, em que Diogo narra a história de Tito, o filho primogênito que tem paralisia cerebral por causa de um erro médico na hora do parto; Meus Mortos o completa. Em ambos, é o laço familiar, alegre e amoroso, que se revela a essência vital, imune às vicissitudes.

Diogo refaz o laço com o pai, a mãe e o irmão que perdeu, igualmente personagens da sua fotonovela literária, em paralelo a Tiziano e à legião de pintores que o tinham como mestre. Vidas paralelas, tempos paralelos: Diogo sai do luto como o Plutarco dos seus mortos, mas foram os seus mortos que o reescreveram, nua e cruamente, nesse livro não menos do que genial.

PS: Tirarei a próxima semana para descansá-los um pouco. Volto no dia 6 de outubro.

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