InícioEditorialA fabulosa trajetória de Teixeira de Freitas, baiano que inventou o IBGE

A fabulosa trajetória de Teixeira de Freitas, baiano que inventou o IBGE

Mário Augusto Teixeira de Freitas, estatístico e estiloso (Foto: Memória IBGE) 

Se o IBGE fizer uma pesquisa entre os baianos do Recôncavo perguntando onde nasceu o arrocha, 90% dos entrevistados vão responder, sem titubear: Candeias! No entanto, apesar da música citar como origem um lendário brega cadeiense, o verdadeiro berço do ritmo musical é São Francisco do Conde, a mesma cidade natal de Mário Augusto Teixeira de Freitas, fundador do IBGE.

Uma das instituições mais importantes e estratégicas para o conhecimento e desenvolvimento do Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística abriu suas asas livres em 29 de maio de 1936, completando, portanto, 86 anos de serviços prestados neste domingo. E a grandeza da entidade, que tem como missão retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento da sua realidade e ao exercício da cidadania, é um reflexo de seu mentor, um advogado com grande pendor pela estatística.

A conhecida modéstia e recato de Teixeira de Freitas – com seu bigodinho maroto e oclinhos redondos pré-Lennon – não o impediram de entrar nas rodas mais influentes da República, na primeira metade do século passado, e de se relacionar com as cabeças mais brilhantes do país, colocando a sua no meio (ui!). Para dar uma ideia da magnificência do moço, basta dizer que foi considerado gênio pelos autores de ‘Grande Sertão: Veredas’ e ‘A Rosa do Povo’.

“Guimarães Rosa o admirava muito. Doutor Teixeira ainda levou o escritor para integrar o Conselho Nacional de Geografia do IBGE, os dois tinham muita amizade. E ele trabalhou no Ministério da Educação junto com o Carlos Drummond de Andrade”, conta à Baianidades o professor Nelson de Castro Senra, mestre em Economia, autor de diversos livros sobre o instituto e o próprio Teixeira de Freitas e, como se vê, memória viva do IBGE.

Começos
Texas era filho da baiana Maria José Leonesi e do paranaense Affonso Augusto Teixeira de Freitas, que veio para a Bahia trabalhar na expansão de uma linha férrea. Começou a trilhar seu caminho em 31 de março de 1891, nascido terceiro de uma prole em que dividia a bolacha recheada com dez irmãos. Ainda na mocidade, foi para o Rio, onde graduou-se com distinção no curso de Direito, em 1911. Antes ainda, em 1908, já fazia parte da Diretoria Geral de Estatística do Ministério da Agricultura, Viação e Obras Públicas – por indicação do diretor da facul –, e lá promoveu pesquisas estatísticas até então inéditas no país.

“Ainda na chamada Universidade do Brasil, em 1907, ele tem um desempenho muito grande, e chama a atenção do diretor da Faculdade de Direito, João Evangelista de Bulhões Carvalho, que era irmão do médico José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho. João Evangelista percebe em Teixeira de Freitas um pendor muito grande para a matemática, a reflexão administrativa, e uma visão de Brasil muito grande já no primeiro ano de faculdade, e o recomenda ao irmão, que estava dirigindo a Diretoria Geral de Estatística, que era quem produzia estatísticas na Primeira República”, relata Senra, autor do livro ‘Teixeira de Freitas e a criação do IBGE – Correspondência de um homem singular e plural’, lançado em 2016 por ocasião dos 80 anos do instituto.

Missão: Minas
Em 1920, época de novo censo demográfico, que desde 1890 estava combinado de ser feito a cada dez anos (pularam 1910), Teixeira de Freitas é nomeado delegado geral do recenseamento em Minas, ainda debaixo do sayão de Bulhões Carvalho.

“1920 é um censo de dificílimo, porque tudo que se tentou em matéria censitária foi um fracasso. E Minas é difícil porque é um estado grande e os mineiros são desconfiados. E ele [BC médico] manda Teixeira de Freitas como delegado federal censitário. Poderia ter sido um fracasso, o fim da carreira dele, mas ao contrário, doutor Teixeira se dá muito bem, consegue convencer os mineiros de como o Censo é importante”, recorda Senra, citando ainda a grande jogada do baiano para se sair bem.

“Ele conseguiu convencer o clero local, que também era muito reticente em matéria de propaganda censitária, ao lembrar que foi no contexto de um censo romano que Jesus Cristo e a cristandade nasceu, e isso foi importantíssimo”. A partir dessa abordagem, os padres passam a dar pregações incentivando a população a atender os recenseadores.

O esforço de Texas para fazer as coisas darem certo, viajando a municípios para dar palestras, escrevendo em jornais, e se oferecendo ao governo mineiro para fazer pesquisas temáticas, chama a atenção de Artur Bernardes, então governante, que convida o baiano para reformar a organização estatística local. Daí saem anuários e atlas importantes para ações estratégicas por lá.

Em 22 (um século atrás), Bernardes, com quem Teixeira tinha uma relação cada vez mais próxima, vira presidente da República, e a notável atuação em escala estadual do baiano sobe de nível. “Ele teve, então, a oportunidade de testar a aplicação, no campo da estatística, do sistema de cooperação entre as esferas de governo federal e estadual”, diz Senra sobre “a década mineira” de Teixeira.

Minas não há mais
A convite do Governo Provisório instaurado pela Revolução de 30 – fim da República Velha e início da Era Vargas –, Teixeira de Freitas volta ao Rio para colaborar na organização do Ministério da Educação e Saúde Pública, no qual passou a comandar a Diretoria de Informações, Estatística e Divulgação. É nesse momento que concebe o tal plano de cooperação interadministrativa, de âmbito nacional, e que, estruturando e unificando as estatísticas do ensino no país, molda aquilo que vai dar no IBGE.

Leia também: Desde quando a Bahia é Nordeste

“Ao voltar ao Rio, ele traz a régua e o compasso que vão lhe dar toda a sabedoria para repensar o sistema estatístico brasileiro. Quando Vargas faz uma reforma estrutural do governo, e cria por exemplo o Ministério da Educação e Saúde, quem assume (a pasta) é Francisco Campos, com quem Teixeira conviveu em Minas”. É de Campos o convite para ele criar, no ministério, a diretoria de estatística.

Influencer
Evolução máxima do pensamento e ação de Teixeira de Freitas, o IBGE toma forma de vez em 1934, com um plano de cooperação nas esferas federal, estadual e municipal. E em maio de 1936, finalmente, começa a funcionar o Instituto Nacional de Estatística, que a partir de 1938 muda para a nomenclatura atual. 

Proponente da interiorização da capital federal, Teixeira de Freitas é um dos ‘pais’ de Brasília (Foto: Memória IBGE) 

Entre 36 e 48, no cargo de secretário-geral do Conselho Nacional de Estatística (dentro do IBGE), Teixeira planejou e consolidou a organização estatística brasileira. De sua caixola surge um pensamento global sobre a realidade socioeconômica, política e administrativa do Brasil, e ideias como a difusão do ensino e sua adequação às necessidades do país, uma nova divisão territorial – incluindo a interiorização da capital federal que inspiraria a construção de Brasília –, a uniformização ortográfica, a criação do Planetário Nacional e até o prevalecimento do sistema métrico decimal. Arbitrava em tudo e mais um pouco, mesmo sem o apito.

O primeiro presidente do instituto, inclusive, não é ele, mas o embaixador José Carlos de Macedo Soares, que era também ministro das Relações Exteriores.

“Mas era o secretário-geral [Teixeira de Freitas] que mandava. O presidente era como a rainha da Inglaterra. Era uma figura que doutor Teixeira respeitava, consultava, mas o Executivo, que é o primeiro-ministro, era ele”, explica Senra.

O professor destaca ainda que, humilde, Teixeira nunca afirmou ter sido o fundador do instituto. Quer dizer, disse uma vez só, mas por questão de sobrevivência, que explico já já.

Antes, importante destacar que Getúlio Vargas, quando da criação do IBGE, ofereceu o próprio Palácio do Catete para abrigar a entidade. “Ocupava um pedaço do palácio, ou seja, a instituição já nasce com um prestígio muito grande, uma aura de grandeza”, explica o professor Senra, para quem o IBGE é, desde então, um órgão de estado, e não de governo: “Ele faz conforme a ciência orienta fazer, porque são os melhores métodos e técnicas, e há um respaldo da comunidade científica”.

Nem vem que não tem
Se enfrentar quem não respeita a ciência parece algo do nosso tempo, na época também tinha as ‘lá elas’ que tentavam promover o desmonte por dentro, e o IBGE quase foi vítima disso.

Convidado por Vargas para substituir Macedo Soares, o general Djalma Polli Coelho assume a presidência do instituto em 1951, como o “homem da Geografia do Exército” que sucederia o ministro mais ligado à área da Estatística. No entanto, lá dentro, começou a colocar em dúvida o trabalho dos subordinados. “Foi muita bobagem quando ele disse que as estatísticas do IBGE eram ruins, atrasadas e não confiáveis. Se você tem um presidente desse jeito, você não precisa mais do instituto. Foi um escândalo. O IBGE quase foi extinto”, lembra Senra.

Gabinete da Inspetoria Geral do IBGE na Bahia em julho de 1955 (Foto: Memória IBGE)

Nessa ocasião, Teixeira de Freitas abandonou o perfil pacato, pacificador, e, como diria Irmã Dulce, chamou o general na chincha. “Ele fez uma carta aberta ao presidente Vargas, na qual pede uma comissão para avaliar as acusações do general, e diz que, se forem comprovadas, ele, Teixeira de Freitas, deveria passar o resto da vida na prisão, porque, como único criador do IBGE, havia cometido um crime de lesa pátria, iludindo o país com números falsos. É o único momento em que ele faz uma declaração dessa natureza: ‘eu criei o IBGE, então me ponham na cadeia, se for comprovado isso que o general vive repetindo’”. 

Claro que não houve comprovação, já que uma comissão de cientistas avaliou o caso e deu parecer favorável a Texas. Com sua revolta, o general negacionista foi enxotado um ano após assumir. “Então, diante de tudo isso, eu diria para você que nós temos na figura de Teixeira de Freitas um baiano muito do porreta”, conclui o professor Senra, que vive no Rio, onde Teixeira faleceu em 1956 – a despedida foi acompanhada por muita gente importante, incluindo o presidente Juscelino Kubitschek.

Um dos melhores
Após a morte, a memória e bravura de Teixeira de Freitas foram reconhecidas com nome de escola tradicional em Salvador, de cidade grande no sul da Bahia, e também num necrológio escrito pelo poeta Drummond, seu parça, que relembrou sua fabulosa trajetória e sua formidável influência:

“Antes dele, nossa estatística era um serviço à espera de uma fórmula, e essa fórmula foi ele quem a cunhou e fez aplicar: cooperação interadministrativa. Não teríamos nunca estatística brasileira por um esforço federal isolado, maciço que fosse; era necessário, transpondo montanhas de inibições, interessar no assunto todas as unidades políticas, chegar até o município, criar um sistema (…). Sem governar o menor pedaço do Brasil, influía profundamente na sua evolução. (…) Um dos melhores brasileiros do seu tempo”.

[Este texto é dedicado aos alunos do colégio estadual Teixeira de Freitas, que foram às ruas essa semana reivindicar a reforma da quadra poliesportiva, prometida há anos. Continuem jogando duro!]

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