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A obscenidade da miséria

Outro dia, um amigo me recomendou fortemente o filme Dois Destinos (disponível no Youtube), dirigido em 1962 pelo italiano Valerio Zurlini e protagonizado por Marcello Mastroianni e Jacques Perrin. Ontem, enfim, consegui assisti-lo. É um melodrama de forte acento social e humanista, que acompanha a relação densa e terna entre dois irmãos que cresceram separados.

Enrico (Mastroianni) morou com a avó depois da morte da mãe, convivendo intimamente com a indigência, sobrevivendo em subempregos e almejando tornar-se jornalista e escritor. Já Lorenzo (Perrin) foi criado por outra família, inicialmente na fartura e posteriormente na pobreza. Ambos, em maior ou menor medida, conhecem os dissabores da penúria, a indignidade da miséria, traduzidas numa dilacerante falta de horizontes.

Apesar de tudo, há o afeto fraterno. E ele sobrevive à incomunicabilidade e à distância. Mesmo o fato de Lorenzo ter sido criado num lar abastado revela a desigualdade da sociedade em que nasceu: sua família verdadeira não teria, em tese, condições de criá-lo, já que sua mãe morreu no parto e seu pai é um ferido de guerra. O homem que assume a sua criação estimula o afastamento dos parentes e impõe regras morais rígidas, colocando-o dentro de uma bolha refratária ao mundo exterior.

Frágil, incapaz de encarar uma realidade para a qual nunca foi preparado, Lorenzo sucumbe. E a partir daí assistimos ao espetáculo imoral da ausência de recursos e de perspectivas. Enfermarias lotadas, médicos indiferentes, tratamentos ineficazes. Tudo isso tendo como pano de fundo a Itália do entreguerras, com suas multidões de miseráveis.

Enrico e Lorenzo são vítimas da incapacidade de um Estado em prover dignidade para seus habitantes. Aluguel atrasado, luz cortada, comida escassa, tudo isso pode parecer fruto de escolhas individuais ou da sorte ou azar do berço em que se nasce. De certa forma, sim, somos fruto das nossas escolhas e da nossa história. Mas o indivíduo não vive em uma ilha, onde caça, pesca e subsiste. Ele é parte de um todo. E quando o todo produz iniquidade em larga escala, é impossível para a maioria escapar dela.

Penso agora em Raskólnikov e Sonia, personagens de Crime e Castigo, vivendo na pobreza absoluta: fome, prostituição, dívidas, remorso. Dostoiévski mostra como poucos a ausência de limites que acompanha uma vida indigna, destroçada pela degeneração. Raskólnikov carrega a sina da miséria e o inconformismo com a própria insignificância. Já Sonia encarna a mais pura resignação.

Tanto Dois Destinos quanto Crime e Castigo dialogam, de certa forma, com estes tempos de utopias devastadas em que vivemos. Tempos de gente sem trabalho, comendo restos de ossos, segurando cartazes nos semáforos, pagando pequenas fortunas por botijões de gás. Tempos impiedosos com quem é mais vulnerável.

Essa pobreza – obscena, sólida, maciça – expõe a fratura moral de uma sociedade em declínio. Um Estado apodrecido acaba por apodrecer todo um país, seja na Rússia czarista, na Itália fascista ou no Brasil bolsonarista. Deterioração econômica e social que, no nosso caso, não pode ser atribuída apenas à pandemia: foi planejada em gabinetes e levada a cabo por um fanfarrão canalha e corrupto. É o conceito de austeridade fiscal elevado ao extremo da crueldade humana.

Algo sobre o qual reflete Tony Judt, brilhante historiador britânico, em seu livro O Mal Ronda a Terra, que descreve a dissolução (ao menos em parte) das políticas de bem-estar social no mundo: “No momento, sentimos orgulho por sermos duros o bastante para causar dor aos outros. Se um antigo costume ainda valesse, ser duro consistiria em suportar a dor, e não em impingi-la aos outros. Talvez fosse melhor pensar duas vezes antes de valorizar tão insensivelmente a eficiência em detrimento da compaixão.”
 

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