MUITO
O tempo não passa, se transforma: a lição de vida da mestra ceramista Hilda Salomão
Por Pedro Hijo
19/10/2025 – 6:09 h

Escultura Andarilhos, de Hilda Salomão –
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O tempo não passa, ele se transforma. Ao menos essa é a sensação de quem visitar a mostra O Caminho de Volta – Andarilhos, exposição da ceramista baiana Hilda Salomão no Museu de Arte da Bahia (MAB). As paredes do casarão vão abrigar anos de esculturas, painéis e instalações. “Percebi que existia um caminho, e que ele me levava de volta às imagens e expressões que sempre estiveram comigo”, diz Hilda, que comemora meio século de carreira.
Aos 70 anos, a baiana não queria fazer da mostra uma retrospectiva. “É uma travessia”, afirma. A menina que brincava com barro ao lado da mãe e da avó até hoje se surpreende com o fogo. “É um olhar sobre o percurso”, completa.
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No mesmo dia da abertura da exposição, será lançado um livro homônimo, publicado pela editora SobreGentes, que mergulha nas memórias, nas texturas e nos bastidores da arte de Hilda. A obra, segundo a ceramista, nasce do desejo de olhar para trás. “Tudo o que fiz está ligado por um fio invisível, é um rio subterrâneo que, de tempos em tempos, emerge”, escreve no prefácio.
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Herança

Hilda e a mãe, Ângela Boaventura Leite Salomão | Foto: Divulgação
Antes de ser artista, Hilda foi neta. Antes de ser professora, foi aprendiz no ateliê da mãe, Ângela Boaventura Leite Salomão, e da avó, Autinha Boaventura Leite. “Eu não tenho memória que não seja junto com a argila”, lembra. A infância foi marcada por tanques de reciclagem de barro, traquinagens entre irmãos e primos e uma liberdade que mais tarde se tornaria método.
“Minha avó ficou viúva muito cedo e usou a arte para sustentar a família”, conta Hilda. Autinha começou com chapéus, flores e pinturas, até descobrir a cerâmica. Foi ao Rio de Janeiro estudar e depois trouxe o ofício para Salvador, no final dos anos 1940. “A moda mudou, e o barro ficou”, recorda a neta.
O aprendizado com a argila começou como uma brincadeira que se estendia por horas. Ela descreve a alegria de pisotear a argila no tanque grande da avó, um processo que ajudava na reciclagem do material e que para as crianças era pura diversão. “Imagine a farra!”, conta.
Para Hilda, essa intimidade com a argila cultivou a prática artística, mas também um modo de ver o mundo. A aprendizagem e o brincar caminharam juntos desde cedo, e se tornaram palavras-chave no ofício da artista.
Deste mesmo barro, três gerações foram moldadas. Aos 15 anos, Hilda ajudava a mãe no ateliê e já ganhava o próprio dinheiro, num aprendizado que considerava mais valioso que o acadêmico. Mais tarde, formou-se na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), mas afirma que foi no ateliê familiar que aprendeu sobre paciência, escuta e reinvenção.
Professora

| Foto: Divulgação
Hilda formou gerações de artistas no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), onde foi professora das Oficinas de Expressão Plástica por quase 30 anos. “Acho que ensinar é o meu propósito mesmo”, diz. “O artista existe em paralelo, mas o professor é quem ocupa um lugar na vida das pessoas”. No MAM, ela criou o Mural Aberto, projeto que levou a cerâmica a escolas, hospitais e praças e aproximou pessoas do museu.
Talvez entusiasmo seja a palavra favorita de Hilda. Ela usa o termo como quem nomeia uma força vital. “O artista precisa disso”, afirma. “É o que me faz levantar de madrugada para ver o forno aceso. É paixão e resistência”.
A psicóloga Júlia Barros, de 47 anos, é uma das alunas que testemunham esse processo. Ela reflete que, diante de um mundo tão digital e tão movimentado, experiências essenciais acabam ficando para trás. “As tardes que passo no ateliê me ensinam a subverter o tempo, como um ritual”, conta.
Nas aulas de Hilda, Júlia encontrou algo que havia se tornado raro para ela: o tempo de existir. “A professora me conduz ao encontro da minha poética, da minha forma particular de criar, de sentir e de ser”, afirma.
A paulistana Tania Roseghini, hoje com 25 anos de Bahia e duas décadas de convivência com Hilda, chegou ao ateliê por acaso, indicada pelo genro, arquiteto. “Eu vivia um momento difícil de estresse”, lembra. “Fui ao ateliê e foi encantamento à primeira vista”.
Tania conta que a paciência e o cuidado com que Hilda conduz as aulas transmitem segurança. “Hilda é incapaz de censurar qualquer trabalho e sempre encontra beleza e criatividade mesmo nas peças mais simples”, afirma. Aposentada como empresária, Tania se dedica integralmente à cerâmica.
Retorno

Senhora do Tempo | Foto: Divulgação
O nome da exposição tem o peso das palavras que retornam. Hilda fala sobre recomeços com a naturalidade de quem já viveu muitos. “Eu não fiz a exposição para contar uma história linear”, pontua. “Fiz para mostrar o que permanece, porque a paixão e o entusiasmo continuam. O que muda é a maturidade, a forma de enxergar”. Entre as obras expostas estão Andarilho, Senhora do Tempo e Procissão, que sintetizam a espiritualidade da trajetória da artista. “É o movimento dos que caminham e retornam, dos que encontram sentido na repetição”.
Para a curadora da mostra, Alejandra Muñoz, o percurso de Hilda é um “ritornelo”, termo da música e da filosofia que significa retorno e recomeço. “Ela transforma a repetição em gesto criativo”, diz Alejandra, que há anos pesquisa a cerâmica contemporânea na Bahia e enxerga na obra de Hilda um rito de permanência. “Cada peça dela parece conter o tempo inteiro da vida. A cerâmica é a matéria que se faz memória”, afirma.
O livro, de acordo com Hilda, amplia o mergulho na trajetória da artista. Com direção editorial do publisher Dan Maior, a obra reúne textos críticos e poéticos de autores como Matilde Matos, Justino Marinho e Calasans Neto, além de fotografias da artista visual Marta Suzi. Nas páginas, Hilda compartilha bastidores, texturas e atmosferas do fazer artístico.
Atual

Hilda e a mãe, Ângela Boaventura Leite Salomão | Foto: Divulgação
Em tempos de aceleração e telas, para Hilda o barro se torna resistência. “A cerâmica conta a história da humanidade. É uma matéria viva que se desgasta com o tempo, mas também permanece apesar dele”, reflete a artista. “É preciso paciência, porque cada argila tem seu tempo, e resiliência, porque pode acontecer o inesperado”, diz.
O ateliê, para a baiana, é mais do que um espaço de criação: é uma forma de estar no mundo. “Existem momentos no fazer da cerâmica em que você precisa estar presente. Não dá para se distrair. Isso gera um estado de meditação”, explica. Esse é um dos motivos pelos quais tantas pessoas chegam a ela em busca de um respiro.
Aluna há três anos, Advany Figueiredo conheceu o barro durante a pandemia e, com a condução de Hilda, transformou o hobby em um modo de viver. Segundo ela, o ateliê da professora é “uma terapia da alma”. “O cenário é de música clássica, cafés e boas risadas sempre”, conta.
Hilda vê no trabalho com a argila um convite à paciência, uma virtude cada vez mais rara no mundo digital. “É preciso esperar o tempo para que cada coisa na argila possa acontecer”. O processo exige cuidado e escuta: a secagem, a queima, o fogo e o erro fazem parte de um ciclo que não se pode apressar. “A vida é assim”, diz.
Hilda observa que, ao moldar o barro, o ceramista é constantemente lembrado de que não tem controle sobre tudo. Explica que, embora seja possível minimizar danos, o resultado final nunca está totalmente nas mãos do artista. As reações da argila e a imprevisibilidade do forno ensinam sobre o desapego, e transformam o que poderia ser um fracasso em aprendizado. “A cerâmica é um exercício de resiliência”, diz. “Pode acontecer o dano, pode acontecer o inesperado, mas é preciso descobrir sempre um novo olhar sobre aquilo que aconteceu”.
Para ela, o fazer cerâmico é mais do que uma técnica: é um estado de presença. Nessa entrega silenciosa, Hilda encontra um contraponto à pressa contemporânea. “A cerâmica incorpora em você essa forma de viver o tempo. É como se ela ensinasse a alma a respirar devagar”.
Serviços
Exposição “O Caminho de Volta – Andarilhos”
Exposição e lançamento do livro
Local: Museu de Arte da Bahia – MAB, Avenida Sete de Setembro, 2340 – Corredor da Vitória, Salvador
Abertura: 23 de outubro (quinta-feira), às 18h30
Visitação: de 24 de outubro a 21 de dezembro de 2025
Horário: de terça-feira a domingo, das 10h às 18h.
Entrada: Gratuita
Mais informações na página do Instagram: @hildasalomao
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