
Em um dia qualquer, conheci Dona Maria. Uma mulher idosa, cujo olhar carregava a história de uma vida inteira. Minha tarefa era determinar se ela tinha a capacidade de exercer os atos da vida civil. A resposta, com pesar, foi negativa. Pois Dona Maria, em seus relatos, acreditava que seus filhos eram crianças e vivia em um mundo onde a mãe, falecida há décadas, ainda estava presente.
Ao publicar meu julgamento, uma palavra me atormentava: “lucidez”. O que realmente significa ser lúcido? Naquele instante, percebi que Dona Maria expressava uma forma de lucidez que era muito mais vibrante do que muitas conversas revestidas de razão. Sua fragilidade se misturava com uma forte vontade de viver.
Ela chegou vestida com um vestido desbotado, mas que usava com dignidade, preocupando-se com sua aparência. Disfarçava sua fragilidade com um desejo genuíno de conectar-se. Quando estendi a mão para confortá-la, ela segurou-a com delicadeza, criando um laço silencioso que a fez relaxar.
Dona Maria falou sobre seus sonhos: “Quero andar, tomar sol”. Contou sobre sua casa, sua formação e o orgulho de ter ensinado muitos. Cada palavra dela revelava um abismo de afeto e autonomia, uma vida rica em experiências, mesmo que limitadas por uma realidade confusa.
Quando perguntei de onde vinha, ela respondeu com precisão: “Eu vim de dentro da minha casa.” Sua resposta transcendeu qualquer confusão geográfica, trazendo à tona uma verdade profunda sobre a conexão que cada um tem com seu lar.
Hoje, o café é a memória que aquece. Quando lhe ofereci um, seus olhos brilharam. “Café com açúcar, pouco, só pra matar saudade.” Uma simples xícara se tornou um símbolo de tudo o que é humano — da capacidade de sentir e se lembrar, mesmo em meio à confusão.
A doçura dessa interação me marcou. Perguntei a Dona Maria se retornaria, e ela afirmou: “Volto, porque amei o seu rosto!” No fundo, eu sabia que ela não voltaria, mas aquele momento ficou eternizado em minha memória. É uma lembrança que carrego, colorindo ainda mais o meu dia a dia.
A reflexão que surge desse encontro é sobre a complexidade da capacidade humana. Dona Maria pode não entender contratos, mas sua vontade é essencial, e sua existência, cheia de significado. O Estatuto da Pessoa com Deficiência promoveu uma mudança fundamental ao reconhecer que, mesmo aqueles que precisam de apoio, são seres inteiros e cheios de vida.
Assim, embora eu não consiga definir lucidez em termos clínicos, aprendi que, mesmo tomando meu café amargo, sou capaz de torná-lo doce ao relembrar que o verdadeiro valor da vida está nas pequenas e significativas interações humanas. A saudade e o amor jamais podem ser ignorados.
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