28 setembro, 2025
domingo, 28 setembro, 2025

O segredo dos três homens: cinema baiano provoca reflexão sobre masculinidade e violência

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Mescla instigante de documentário e encenação da cineasta baiana Letícia Simões, é um dos destaques da Mostra CineBH

João Paulo Barreto | Especial para A TARDE*

Por João Paulo Barreto | Especial para A TARDE*

28/09/2025 – 5:11 h

Murilo Sampaio, Giordano Castro e Guga Patriota vivem os três homens do título, figuras representativas a refletir fases históricas do Brasil

Murilo Sampaio, Giordano Castro e Guga Patriota vivem os três homens do título, figuras representativas a refletir fases históricas do Brasil –

Parte da programação da Mostra Brasil CineMundi, que apresenta filmes já concluídos e que, durante fases iniciais de produção, passaram por edições anteriores do evento de mercado do cinema brasileiro dentro da Mostra de Belo Horizonte – CineBH, A Vida Secreta dos Meus Três Homens, longa da cineasta baiana Letícia Simões, foi um dos destaques desse ano no festival realizado na capital mineira em seu 19º ano.

Representando um mergulho em lembranças pessoais e familiares da diretora, além de um estudo da história do Brasil em diferentes contextos históricos que vão desde o cangaço até a ditadura militar, o trabalho mescla, com esmero, aspectos encenados de dramatização a uma abordagem documental.

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Voltada para um encontro particular da cineasta com traumas do passado de sua família, a obra traz um constante desvendar da história de três gerações de figuras paternais da realizadora, sendo estes Fernando, pai de Letícia e um informante do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão de repressão da ditadura militar; Arnaud, avô de Letícia que, na juventude, durante o começo do século XX, se envolveu e passou a ser parte de um grupo de justiceiros no Nordeste; e Sebastião, fotógrafo negro e gay que foi padrinho da cineasta e que perdeu o grande amor de sua vida.

“Eu quis tratar muito sobre uma construção de violência masculina, por isso, eu parto desses três homens para pensar sobre algo maior assim. Propus trazer para o filme muitas chaves de leitura sobre masculinidade, sobre violência”, explica Letícia em entrevista ao Jornal A TARDE.

Tal violência se encontra na obra não de forma banal ou evidente, mas inserida em um contexto de análise a partir, por exemplo, da descoberta que a jovem fez ao entender que seu pai era um informante da ditadura militar.

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Passado esmiuçado

Tendo sua gênese nessa descoberta da vida que seu pai levava durante os anos de chumbo, o filme remete essa origem a um trabalho anterior de Letícia, no caso, o documentário Casa, de 2019. Na obra, um destrinchar do retorno da diretora a um contato diário com sua mãe, mulher que sofre de depressão e bipolaridade, após dez anos ausente.

“Tudo começou pelas fotos que serviram como base de pesquisa para o Casa. Minha mãe guardava esses arquivos em um armário trancado. Então, o filme possibilitou que ela abrisse essas fotos e isso me levou numa investigação para o A Vida Secreta de Meus Três Homens”, relembra a diretora ao falar do processo iniciado há seis anos.

As imagens das fotos, que trazia seu pai em lugares como Brasília, junto à lembrança de uma estranha rotina de trabalho do homem, levantaram diversas suspeitas na diretora. “Várias coisas da minha vida que eu lembrava, mesmo não tendo convivido com meu pai, observando hoje, não faziam muito sentido”, pontua Letícia.

“Por exemplo, como é que um cara tinha cinco empregos? Ah, porque era assim que se pagavam os informantes. Através de cargos públicos. Então, as coisas começaram a fazer sentido. E aí eu falo da questão da roteirista. Elas fazem sentido para mim que trabalho com o cinema, mas elas são impossíveis de provar. Porque, factualmente, era algo feito para não poder ser rastreado” afirma a diretora.

Ela relembra que o período no qual começou a investigar tais fatos foi um dos mais tenebrosos da nossa história recente. “Eu comecei a fazer a pesquisa durante em 2019. Naquele período, as coisas ainda estavam acessíveis. Ainda se podia ter acesso ao site da Comissão da Verdade, ter acesso a informações sobre o SNI (Serviço Nacional de Informações) que estavam sendo digitalizados. A partir do meio de 2019, tudo foi derrubado”, comenta.

Letícia ao falar sobre o período do governo Bolsonaro. “Nem todos os documentos da época da ditadura militar estão digitalizados. Por conta do Covid-19, eu não podia me deslocar até os centros. E os que estavam, o acesso foi cortado. Muitos sites foram derrubados na época ou conteúdos foram retirados. Por isso que eu falo que foi uma mistura entre um trabalho de detetive e de roteirista”.

Documentário e encenação

Na escolha da estrutura documental com inserções de dramatização dos momentos da vida dos seus três familiares, juntamente com a escolha de quebrar uma das paredes narrativas e inserir, também, o processo de criação dentro do próprio filme, Letícia foge de armadilhas fáceis.

“Eu acho que o documentário, enquanto gênero cinematográfico, se podemos falar dessa forma, é inesgotável. A gente acaba se enquadrando ou sendo enquadrado. Para falar de determinados temas, precisamos fazer de determinada forma. E eu, como uma pesquisadora da linguagem cinematográfica do real, gosto muito de pensar em quais formas podemos usar para contar determinadas histórias que partem da realidade”, pontua a documentarista.

A abordagem pessoal e familiar junto aos aspectos factuais da história do Brasil foi um dos pontos desafiadores do roteiro de Letícia. “Essas informações da pesquisa, do que está no papel, cruzam com esse território nebuloso que é o da memória. Para além da minha vontade de experimentação, tem uma relação entre o que o filme quer provocar e o que foi encenado a partir dessas nossas lembranças. Quando olhamos para a história de uma sociedade, o que a gente acredita ou não em relação ao que nos contam? E isso é feito a partir dessa forma de encenação”, explica.

No equilíbrio conciso de seu elenco, a roteirista e diretora conseguiu captar um modo de transmitir para o espectador essa narrativa em um uníssono entre o documental e o encenado.

“São três registros de interpretação muito diferentes um do outro. O registro de Guga (Patriota), de Giordano (Castro)e de Murilo (Sampaio) são completamente diferentes. Foi pensado para ser assim. Para que, de alguma forma, houvesse um diálogo de experimentação, tendo a presença de Nash (Laila) como narradora”, explica Letícia ao celebrar essa sintonia de seu elenco.

A Vida Secreta de Meus Três Homens deixa para o espectador uma reflexão que, para além do aspecto histórico de sua proposta, algo de pessoal e intimista se torna crucial nessa abordagem idiossincrática da cineasta, mas que ressoa em todos nós.

“Até onde vai as histórias que contamos para nós mesmos? Ou as histórias que nos contam sobre nós mesmos? Era um pouco isso que estávamos tentando fazer”, conclui.

*O jornalista viajou para BH a convite da Universo Produção

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