O funeral da Rainha Elizabeth II marca o fim de uma era. Terá o reinado de Charles III, ou seu provável sucessor, príncipe William, relevância para ser considerado um marco na nova era da história contemporânea, tal como foi o da matriarca?
Com o fim da regência da rainha pode estar em jogo o declínio de uma ordem internacional ocidental, com a relevância da família real limitada ao próprio Reino Unido. A rainha iniciou seu reinado em um período marcado pelo pós 2ª Guerra, no contexto de polarização entre EUA e URSS.
O pós-guerra foi, ainda, um prolongamento da transição do governo dinástico – no qual o território e a população de um Estado eram confundidos como propriedades do monarca – para o governo republicano pautado por direitos aos seus cidadãos.
Desde 1950, os Estados Democráticos vêm viabilizando os direitos às liberdades civis individuais, à liberdade para votar e ser votado na escolha dos governantes e a garantia universal da saúde e educação. A partir de 1970, entra para a agenda global a discussão sobre preservação ambiental, racismo, igualdade de gênero e preconceito sexual.
Ao longo desse período, a ONU protagonizou e abrigou o processo de emancipação de colônias, muitas delas britânicas; enquanto aparatos legais racistas, como o apartheid nos EUA e na África do Sul, passaram a ser rechaçados internacionalmente. Embora o próprio Reino Unido tenha alguma contribuição com esses movimentos emancipatórios, não apaga os séculos de colonialismo e escravidão aderente ao antigo regime dinástico das monarquias.
Não é à toa que, nessa passagem da coroa, movimentos nacionalistas na Jamaica, Austrália e Canadá, entre outros países integrantes do Commonwealth (organização internacional formada por ex-colônias britânicas), questionam a atual legitimidade da coroa britânica como chefe de Estado. Assim ainda fizeram Escócia e Irlanda do Norte, integrantes do próprio Reino Unido.
Paralelo a escândalos internos envolvendo a família real, o mundo vem em um processo de tensão geopolítico que coloca em xeque a ordem ocidental liderada pelos EUA, ex-colônia britânica. Assim, fica a questão: a monarquia britânica deixará de ser referência relevante para acompanharmos o andamento da história mundial? Nenhuma outra família real ocupa tanto espaço nos noticiários internacionais como os Windsor. Um importante recurso para o exercício diplomático inglês, funcionando como poder simbólico nas relações com países e indivíduos em boa parte do mundo.
O fim da Era Elizabeth II é um exemplo sintomático do que enfrenta, atualmente, o próprio bloco ocidental: debate-se com a contradição entre difundir ideais, propagados desde a 2ª Guerra em torno de Direitos Humanos e emancipação dos povos, e a superação das experiências fascistas, que derivam da dominação exercida pelo mesmo ocidente, ainda suplantada no sectarismo racial e social.
Henrique C. de Oliveira é coordenador do Núcleo de Práticas em Economia e Relações Internacionais – NERI e professor do Mestrado em Direito, Governança e Políticas Públicas da UNIFACS