Quem renuncia pode ser um herói? No senso comum, em toda desistência reside uma derrota. Para o psicanalista Adam Phillips, entretanto, a renúncia é carregada de ambiguidades: pode ser um fracasso, um sacrifício, uma concessão, uma fraqueza. É também uma realidade que se impõe e coloca até presidentes como passageiros de seu próprio destino.
O exemplo mais recente é Joe Biden, presidente dos EUA que renunciou à sua candidatura à reeleição. Após a pressão de aliados, criticando-o ou secando o rio de doações à sua campanha, Biden bateu em retirada e anunciou apoio a Kamala Harris, sua vice.
Há renúncias que são vistas como admiráveis ou desejáveis. Preocupado com sua biografia e o restante de seu mandato, Biden quis aparentar sacrifício e concessão pelo bem da democracia americana, em risco com uma vitória de Trump. “Reverencio este cargo, mas amo mais o meu país, e o melhor caminho é passar o bastão para a nova geração”, declarou. Quer ser herói.
Mas Biden e sua equipe sabiam de suas fragilidades. Há meses parte da imprensa apontava que o presidente evitava falar de improviso e participava de menos coletivas. O curioso é que Biden desafiou Trump, após provocações do bilionário condenado, para o fatídico debate do final de junho. Em um vídeo publicado nas redes sociais o presidente disparou: “Donald Trump perdeu dois debates para mim em 2020, e desde então ele não apareceu mais para debater. Agora, ele age como se quisesse debater comigo novamente. Então vamos escolher as datas, Donald. Eu ouvi falar que você está livre às quartas-feiras”. Como na tragédia grega, Biden foi uma personagem que caminhou sem hesitação para seu abismo.
Na conhecida Jornada do Herói, estrutura narrativa de Joseph Campbell adaptada para roteiros de filmes e séries, a história começa com a protagonista recusando e posteriormente, atendendo ao chamado de uma aventura. Kamala Harris está no início de sua jornada presidencial. Passará por inúmeras provações, encontrará aliados e enfrentará inimigos até derrotar seu adversário fatal.
Nela, o herói sempre alcança a redenção no final da história. É uma ideia bem diferente da tragédia grega ou dos livros de Kafka, como trabalha Phillips, autor de “Sobre Desistir”: “heroínas e heróis nunca desistem” e “eles são exemplos catastróficos da incapacidade de desistir”.
Poderia Dilma Rousseff ser personagem de uma tragédia grega? Deixo especialistas responderem. Mas essa relação se estabelece quando seu orgulho alimentou seu destino irremediável. Dilma não renunciou. Encarou seu impeachment isolada e abandonada pelo seu próprio partido, ciente de sua inocência administrativa e de seu crime: a incapacidade de fazer política com a direita que anos depois se assentaria bolsonarista, e dos desastres econômicos – que também são políticos – de seu governo. Não quis ou não conseguiu jogar o jogo e não renunciou.. Manteve a identidade da estudante que foi torturada pelos militares durante a ditadura. Ganhou uma narrativa de lutadora, que não foi suficiente para ser abraçada pelas urnas de Minas Gerais. Hoje é presidente do BRICS. Teria a mesma trajetória se tivesse renunciado – mais, se tivesse delatado seus companheiros?
Que monólogos dariam as reflexões solitárias e insones desses políticos. As angústias e hesitações que a renúncia, a persistência ou o chamado produzem em suas próprias identidades. Costumamos enxergar na desistência uma covardia e na persistência um heroísmo – uma “tirania da conclusão”, segundo Phillips. Para Biden, a realidade se impôs. Dilma quis manter sua biografia. Kamala está começando sua jornada.