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‘Fui perdendo minha mãe aos poucos, morrendo um pouco a cada dia’; veja relatos sobre o luto de familiares de pessoas com demência

Era um dia comum de 2003 quando Anna Izabel Arnaut saiu de casa para visitar uma sobrinha e se perdeu no caminho. Percebendo a confusão da senhora, um homem a levou até um bar e a polícia foi chamada. Tentando encontrar a família de Anna, um policial perguntou a um casal e o filho que passavam se conheciam alguém com o sobrenome Arnaut. A criança reconheceu o sobrenome como de um colega de sala. Dessa forma, Anna Izabel conseguiu voltar para a casa. “Depois desse ocorrido levei a minha mãe em um neurologista, que fez um exame clínico e me disse que ela estava com uma demência. Depois veio o diagnóstico de Alzheimer. Levei o maior susto, pois nunca tinha escutado falar a respeito e para mim, na época, demência era loucura. Ainda me disse para arrumar uma casa de repouso para ela, pois ia me dar muito trabalho. Comecei a pesquisar sobre o assunto e me informar o máximo que podia, para que nada me pegasse de surpresa. A parte emocional fica muito abalada durante todas as fases que passamos, vivemos estressados o tempo todo. Cada fase tem suas peculiaridades e todas nos pegam de surpresa. Devemos procurar entender da doença e saber o que pode vir a acontecer para estar preparado. Mas saber é uma coisa e vivenciar é outra. Então, por mais que saibamos que aquilo pode acontecer, na hora que aparece ficamos abalados, precisamos de acompanhamento psicológico. A doença de Alzheimer é muito cruel, vai matando aos poucos a pessoas que amamos. Quem sofre muito com isso é o cuidador que assiste. Também abri mão da minha vida pessoal e do meu autocuidado”, afirma Ana Heloisa Arnaut, filha de Anna Izabel.

Cerca de 30% das pessoas que cuidam com alguém com o diagnóstico de demência acabam adoecendo cerca de um ano depois, relata a Presidente da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz), Elaine Mateus. Depressão, obesidade, aumento de diabetes e colesterol são os principais efeitos colaterias. Apesar disso, Ana Heloísa pondera que a doença ensina muita coisa. “Eu aprendi ser mais tolerante, humilde, paciente e ver que não somos nada. A pessoa perde tudo que um dia foi. Eu procuro só lembrar das coisas boas e engraçadas que passamos”, resume.

Izabel morreu em 2015, aos 94 anos, após 13 anos de conivência com a doença. O processo de cuidado da mãe ao longo dos anos ajudou Ana Heloísa a se preparar para a despedida. “É tanto sofrimento que vemos e passamos com a pessoa que amamos que não queremos ver mais isso. Como a doença não tem cura, sabemos que não terá melhora nenhuma. E foi assim que me preparei para o adeus final. Nós vemos a pessoa definhando em vida. Para quem cuida é muito difícil. A fase terminal é a pior, porque a pessoa fica vegetando. Você se prepara para a partida, mas ela já partiu. Via o sofrimento dela tão grande que no final eu pedi para Deus que a levasse. Ela estava morrendo um pouco a cada dia. No dia que ela morreu, já estava em posição fetal, toda enrijecida, no oxigênio, sem abrir os olhos. Apenas respirava calmamente. Estava sozinha com ela e vi sua respiração parando aos poucos sem sofrimento. Sabia que estava partindo, me despedi e disse a ela que fosse tranquila que eu ficaria bem. Já estava mais que preparada para essa hora, pois ela já não estava mais comigo. Vejo pessoas que ficam revoltadas, desesperadas e se sentem culpadas. Acham que não foram capazes de cuidar direito. A vivência do luto fica bem complicada. Eu já fiz ao contrário. Vivi o luto ainda com ela viva. Tenho toda certeza que dei o meu melhor, fiz o que tinha capacidade de fazer na hora, minha consciência está tranquila. Agora a saudade não passa”, revela. Hoje, Ana compartilha dicas de sua vivência no blog “Alzheimer, minha mãe tem – Ana’s”, como forma de ajudar outras pessoas.

 

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Para além do Alzheimer 

Apesar de mais comum, o Alzheimer não é o único tipo de demência. Miralda Vilas Boas possui demência vascular desde 2008 e é cuidada pela filha, Liceia Villas Boas. Os primeiros sinais da doença foram pequenos esquecimentos, como deixar a torneira aberta e o fogão ligado. Os sintomas foram se agravando e somados a crises de irritabilidade – até que a família decidiu a levar ao neurologista. Vários profissionais diagnosticaram Miralda com Alzheimer. Um ano depois, no entanto, um médico descobriu que, na verdade, ela possuía demência vascular. “Além dos esquecimentos, ela andava muito irritada, impaciente e grossa com as pessoas mais próximas a ela. As pessoas costumam ligar esses comportamentos como normal aos idosos, mas pode ser sinal de alguma doença. Por isso, é importante estar atento à combinação de sintomas. É comum pensarem em esquecimento como demência, mas a irritabilidade também é um grande indicativo. A primeira dificuldade de lidar com a demência é que a família, muitas vezes, resiste a aceitar o diagnóstico”, conta.

“Depois da negação veio a aceitação, nós começamos a tentar agregar conhecimento para cuidar melhor dela. Nos doze primeiros anos depois do diagnóstico, nossa rotina não mudou muito. Apenas tentávamos não criar conflitos com ela, porque a deixava nervosa. Foi difícil para aprendermos que não podíamos discordar dela se, por exemplo, ela dissesse que não almoçou, quando na verdade já havia comido. Tivemos que nos educar e mudar nossa posição, não impor isso a ela. Mas há dois anos e meio, ela caiu e fraturou o fêmur. Ela teve muitos problemas e ficou cadeirante. A partir disso, precisamos adotar outros cuidados. Todo esse processo fez com que eu desenvolvesse ansiedade, início de um quadro de depressão e crises nervosas que me afastaram do trabalho. Eu não tenho vida própria mais. Acabo deixando meu marido e filhos um pouco de lado para cuidar dela. Várias vezes o nosso emocional fica abalado porque a demência é uma doença degenerativa, gradativa e não tem cura. Eu sofri muito por antecipação, a doença tem várias fases e eu pensava muito nessa final. Mas a gente acaba se acostumando com o sofrimento e com a rotina. Hoje, eu já levei tanto susto que acho que já estou me preparando há algum tempo para a partida dela. Acho que vou ficar tranquila. Estou em paz porque hoje ela está sofrendo muito. Tem dia que dá vontade de chorar, mas não é de tristeza porque uma dia ela vai. É uma tristeza por ela estar aqui praticamente vegetando. Hoje ela não reconhece mais nada”, revela a filha Liceia Villas Boas. Ela também decidiu usar seu conhecimento em prol de outras pessoas compartilhando conselhos e dicas pela página do Instagram.

 

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Um retrato do processo de perda

Experiências como as de Ana Heloisa Arnaut e Liceia Villas Boas têm se tornado tão universais que viraram um dos temas do livro de estreia de Cristianne Lameirinha, intitulado “A tessitura da perda”. A obra acompanha a primeira semana de luto da protagonista narradora Beatriz, que perde a mãe para o Alzheimer. “Pelo envelhecimento da própria população brasileira a gente tem visto que o número de pessoas que vem sofrendo com a condição tem sido cada vez maior. Por outro lado, aqueles que estão na faixa dos quarenta anos para frente acabam convivendo com isso de maneira cada vez mais frequente porque vão enxergar essa doença nos pais. Na minha família, temos algumas pessoas que sofreram com Alzheimer e esse sempre foi e ainda é um temor para nós. Diferente de outras doenças que vão fazer sofrer o corpo físico, o Alzheimer é uma doença de perda de identidade. A própria pessoa perde sua memória e passa a não reconhecer os seus. Ela vai perdendo o que tem de mais íntimo e que constitui o eu de cada um, que é a personalidade e a memória. Uma das inspirações para o livro foi essa percepção do doente perder a si mesmo, na sua essência, e de quem está ao redor dele ir perdendo aquela pessoa, ainda que ela continue viva”, relata a autora. 

Logo no primeiro capítulo do livro de Cristianne, a protagonista narra situações vividas com a mãe que retratam a forma como os esquecimentos vão se acumulando até a demência atingir um estágio mais avançado. “A doença tem um quadro evolutivo que faz com que as pessoas que estão ao redor aprendam a lidar com isso aos poucos. No caso da Beatriz, o principal choque foi quando a mãe deixou de falar o nome dela, sendo que ela é filha única. Então, é uma dor muito grande. E, em geral, é uma demanda de cuidado que acaba recaindo sobre as mulheres por conta da nossa cultura e construção social. O cuidador vai se adaptando às mudanças que a doença impõe e vai sofrendo também uma perda contínua”, pontua. Além da questão da demência, Cristianne aborda em seu livro como história, memória e luto entrelaçam o processo de perda e se transformam em uma forma de reconstituir relações de afeto duradouras, assim como os cuidadores fazem com pessoas próximas com demência.

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