InícioEditorialJuiz nega trabalho escravo em caso de doméstica não-remunerada há 44 anos

Juiz nega trabalho escravo em caso de doméstica não-remunerada há 44 anos

A Justiça do Trabalho da Bahia negou a indenização a uma mulher de 53 anos que, desde o sete, viveria em situação análoga à escravidão, em Salvador. Elisabete Dias passou 44 anos realizando funções, como cuidar das crianças da família, até ser resgatada, em 2021, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). No total, o MPT exigiu que fosse paga uma indenização de R$2,4 milhões pela família, o que foi recusado pelo juiz responsável, Juarez Dourado Wanderley. Na sentença do caso, o juiz diz não existir trabalho análogo à escravidão, e nem mesmo trabalho, na situação, visto que Elisabete ‘é um membro da família’ e relatou nunca ter sofrido maus tratos. “(…) dentre todas as afirmações ali assentadas, importante destaque se impõe às seguintes declarações: ‘que considera a reclamada mãe da depoente; que tem 04 irmãos; que todos os 04 irmãos gostam da depoente; que gosta dos irmãos’”, traz o documento. O Código Penal Brasileiro caracteriza o trabalho análogo à escravidão pela submissão de alguém a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição de locomoção dos trabalhadores. Para Marina Sampaio, Auditora-Fiscal do Trabalho que acompanha o caso desde o início, é comum que os trabalhadores não identifiquem a exploração em suas realidades quando não há uma violência explícita. “Esses fatores emocionais acabam dificultando bastante, porque ela se sente, muitas vezes, em dívida com os empregadores, uma vez que a única forma de afeto que conheceu na vida é esse. É muito comum também o isolamento social, então é uma dependência também emocional, uma falta de desenvolvimento da autonomia”, esclarece. A auditora destaca ainda que são situações que causam esse cenário em que os afetos são mobilizados para mascarar a exploração do trabalho. Em resposta à recusa, o MPT recorreu da decisão, pedindo que a sentença seja reconsiderada. Dentro do valor exigido, estão inclusos o pagamento dos salários retidos ao longo do tempo de serviços prestados e os benefícios nunca pagos, como FGTS, descanso remunerado e 13º. Elisabete foi entregue pelo pai à família Cruz, sem nenhuma oficialização de adoção ou documento que regularizasse a situação. De acordo com Dielsson Lessa, advogado da família, o marido da ré era motorista de uma freira e a esposa apoiava as ações sociais, tendo assim o primeiro contato com Elisabete. O advogado afirma que o pai da menina, já órfã de mãe, se casaria com uma mulher que a maltratava e, por isso, pediu que a família, com melhores condições, ficasse com a garota. Segundo Admar Fontes, coordenador da Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo da Bahia (Coetrae-BA), a suposta adoção, feita de forma não-oficial, também seria suscetível à penalização. “Todo resgate tem ação trabalhista e ação-crime, que o Ministério Público Federal deveria ter apresentado. Nesse, não apresentou. Essa é outra falha dos nossos processos. Essa parte só vai para frente se tiver ação crime, que eu saiba não tem nenhuma aberta até agora”, diz. Advogado de defesa, Dielsson Lessa afirma ainda que sua cliente está sendo vítima de uma acusação caluniosa. De acordo com ele, Elisabete foi criada junto aos filhos do casal, que todos tinham uma boa relação, o mesmo plano de saúde e a mesma educação e que ela não concluiu os estudos por falta de vontade. Segundo o MPT, Elisabete dormia no quarto com as crianças e era a responsável pela limpeza e pela cozinha, não tinha liberdade para sair de casa sozinha e praticamente não frequentou a escola, sem conclusão do ensino médio, permanecendo até hoje semianalfabeta. Para Admar Fontes, a decisão foi conservadora e pode causar mais danos no futuro. “Essa sentença é altamente prejudicial para toda a classe de trabalhadoras domésticas porque outros advogados, infelizmente, farão da mesma forma. O juiz podia até não ter reconhecido como trabalho escravo, mas deveria ter reconhecido o vínculo empregatício, pois houve um”. O coordenador diz que, enquanto os filhos do casal se alfabetizaram e finalizaram o ensino superior, Elisabete não completou sequer o ensino médio e cumpria jornadas de até 15 horas, em funções como cuidar das crianças da família. Para Marina Sampaio, há uma conexão inerente entre a exploração do trabalho, raça e gênero. “Nós temos uma sociedade em que o mundo do trabalho é segmentado.As mulheres negras estão na base da pirâmide do mercado de trabalho, elas conformam serviços que são menos valorizados, com menores salários, menos proteção social e um desses serviços é justamente o trabalho doméstico”, completa. De acordo com Admar, a primeira coisa que fizeram após o resgate foi levar Elisabete ao shopping, para comprar roupas íntimas e um celular com acesso a redes sociais. Hoje, ela vive com uma irmã em Aracaju, trabalha, namora e pensa em se casar. O coordenador afirma que casos assim, de descrédito das situações de exploração pela Justiça, ainda são comuns, mas espera que, com a visibilidade, o processo se desdobre com recorrências e que a indenização seja paga. Entre 2003 e 2020, a Bahia foi o sexto estado brasileiro com mais resgates de pessoas em situação análoga à escravidão. Foram 3.378 pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no estado nesse período. Em 2021, ano mais recente de pesquisa, 70 pessoas foram resgatadas no estado. Já em Salvador, entre 2016 e 2022, 31 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatadas, sendo nove delas no último ano. Os dados são do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Em 2023, só nos sete primeiros meses, seis resgates já aconteceram em Salvador, segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Desses, cinco foram em transporte rodoviário de cargas e um por serviços domésticos. O Ministério Público do Trabalho age a partir de critérios definidos e objetivos. São alguns deles:

  • Trabalho forçado
  • Não permitir acesso à educação
  • Não garantia de direitos trabalhistas
  • Jornada exaustiva
  • Falta de fornecimento de água, sanitários adequados
  • Oferta de alojamentos precários, que trazem risco à vida e ao bem-estar dos empregados
  • Salários inferiores ao mínimo

*Sob orientação de Perla Ribeiro e Monique Lôbo

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