De repente, o mundo se tornou menos divino, menos maravilhoso. Quando veio a notícia, quem já foi tocado por aquela voz ficou um tanto mais desencantado com a possibilidade de um amor trazer sorte. A morte de Gal Costa nos deixou com menos brilho.
Aos 77 anos, a soteropolitana que tinha tantos shows, turnês, sonhos a realizar -dela e do público- se foi. Em setembro, Gal suspendeu a turnê “As Várias Pontas de uma Estrela” até o final de outubro, após a retirada de um nódulo nasal. Cancelou apresentações em festivais como o Primavera Sounds, que aconteceu na última semana; e o Festival de Artes de São Cristóvão (Fasc), tradicional evento em Sergipe.
O procedimento foi realizado na cidade de São Paulo (SP), havia sido bem-sucedido. De acordo com Nilson Raman, tour manager da artista, havia informado que ela ficaria afastada dos palcos até se recuperar plenamente. A causa da morte, no entanto, ainda não foi confirmada. Gal morreu dentro de sua casa.
A sua última apresentação em Salvador foi em março desde ano, e teve ingressos esgotados logo na primeira semana de vendas. A turnê também passou por outras capitais, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza, sempre arrastando multidões. O último show foi no Coala Festival, em São Paulo, no dia 17 de setembro.
O velório será aberto ao público na Assembleia Legislativa de São Paulo. Acontecerá na próxima sexta-feira (11), das 9h às 15h. O enterro será fechado apenas para amigos e familiares.
Nascida Maria das Graças Penna Burgos, Gal incluiu o nome artístico em seu registro e morreu Gal Maria da Graça Penna Burgos Costa. Era mãe de Gabriel, 17 anos, adotado pela cantora aos 2, no Rio de Janeiro. Uma maternidade que ela classificava como responsável por mudar sua vida.
Ela contou que sempre quis ser mãe e tentou ter um filho com seu amigo, o cantor Milton Nascimento. “Mas me lembro que me oferecia para ter filho com todo mundo (risos)… Porque o sonho da minha vida era ter um filho. E eu não engravidava. Minha mãe falava “Gracinha”, ela me chamava assim, “adote uma criança”.
Gal era uma voz do Brasil e da Bahia para o mundo. Sua morte foi motivo de reportagens ao redor do globo: veículos de Argentina, Espanha, Estados Unidos, França e Itália noticiaram sua passagem. “Uma influente cantora brasileira, que foi uma das principais figuras da Tropicália, movimento dos anos 1960”, reportou Adrian Horton, do britânico The Guardian.
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David Biller, do estadunidense Washington Post, descreveu Gal como uma mulher de cachos rebeldes e cabelos escuros, conhecida por emprestar uma voz única a várias músicas importantes. Elencou Aquarela do Brasil, de Ary Barroso; Dindi, de Tom Jobim; Que Pena, de Jorge Ben e Baby, de Caetano Veloso.
O La Nación, da Argentina, recordou o nome de batismo de Gal e que ela começou a cantar ainda jovem, aos 15 anos, em festas escolares de Salvador. Nessa época também começou a trabalhar numa loja de vinis e ali descobriu diversos de seus ídolos, como João Gilberto. Agência estatal italiana, a Ansa disse que era um dia de luto na música por todo o mundo.
Na Espanha, o El País recordou a amizade de Gal Costa com Caetano Veloso e Gilberto Gil: “era uma das lendas de seu país e pertenceu a uma geração que alcançou êxito nos anos em que o Brasil sofria com a ditadura militar”. Pelo mesmo caminho, foi o francês Le Parisien, que publicou uma foto de Gal ao lado do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, de quem ela era próxima, declarou voto e comemorou no dia da vitória contra Jair Bolsonaro.
“O país que Gal Costa cantava para mostrar sua cara hoje perde uma de suas grandes vozes. Mas o legado, a obra, a lembrança e as canções serão eternas como seu nome, Gal. Meus sentimentos e solidariedade aos familiares, amigos e milhões de admiradores”, publicou o presidente.
Lula foi uma das diversas personalidades políticas a declarar pesar. Ex-prefeito de Salvador, ACM Neto disse que Gal revolucionou a MPB e levou a cultura da Bahia para o mundo. Ele lembrou do show que fez na cidade em 2013, no Festival da Virada. “Hoje o Brasil perdeu uma das maiores artistas de todos os tempos, a baiana Gal Costa. Com sua voz incomparável, Gal revolucionou a MPB e levou a cultura da Bahia para o mundo. Em 2013, quando era prefeito, Gal Costa participou do Festival Virada e fez um show inesquecível”.
Governador da Bahia, Rui Costa decretou luto oficial por três dias em todo o Estado. “Lamento profundamente a morte de Gal Costa. Com sua partida, perdemos uma das mais potentes vozes da nossa música, eternizada em interpretações que cantam a Bahia e o Brasil para todo o mundo”, escreveu.
Seu sucessor, Jerônimo Rodrigues destacou o papel importante de Gal Costa na luta contra a Ditadura Militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985: “Dona de uma voz inigualável, Gal nos presenteou com a sua arte e se tornou um dos símbolos de resistência em tempos sombrios da nossa História, no passado e no presente. Suas interpretações farão, para sempre, parte da trilha sonora das nossas vidas.”
O luto foi bem além do mundo político. Amigos e admiradores também se manifestaram. A jornalista Mirian Leitão, fã de Gal, comentou que um dos discos da cantora foi crucial em sua vida. “A voz mais clara, mais linda, mais suave e que nos ajudou na travessia de um tempo terrível. Gal Fa-Tal a Todo Vapor me embalou quando eu mais precisei. Foi ouvindo e ouvindo que aprendi a cantar Assum Preto. E na prisão cantava para as minhas amigas. Obrigada por tanto Gal”, escreveu.
Um dos grandes amigos de Gal, o cantor Gilberto Gil, comentou que estava bastante triste com a partida da sua ‘irmã’. “Muito triste e impactado com a morte de minha irmã Gaúcha”, disse.
Pitty, Zélia Duncan, Daniela Mercury, Rita Lee, o Olodum, Paula Toller, a escola de Samba Mangueira, Marisa Monte e Preta Gil foram alguns dos exemplos, entre os vários, que lamentaram a partida de uma das vozes mais marcantes da história.
Diretor do Teatro Vila Velha, Márcio Meirelles recordou que foi naquela casa a estreia de Gal nos palcos, num espetáculo que foi o embrião dos Doces Bárbaros, em 1964.
Então vendedora de vinis, ela se juntou a uma secundarista do colégio Severino Vieira, que tinha um irmão estudante de filosofia e era amigo de um aluno de administração. Esse pequeno bonde, em outras palavras, eram Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. O quinteto assumiu a responsabilidade de suprir o vácuo deixado pelo paulista Gianfrancesco Guarnieri, que não concluiu seu espetáculo a tempo da inauguração do teatro.
“A voz de Gal fica, a revolução que ela promoveu persiste, a beleza e o encantamento do que ela construiu continua, mas cria um vazio essa ausência da presença física dela, que deixou marcas profundas no Teatro Vila Velha: seu nascimento como artista e seu lançamento para o mundo. A presença dela nas vezes que visitou o teatro e conversou com a gente continua nas paredes, no palco, em algum plano dentro do Teatro Vila Velha”, disse Meirelles.
Naquele agosto de 1964, os cinco jovens estrearam a peça-concerto Nós – um sucesso de crítica e público. Nada mal para quem tinha convidado parentes, primos e irmãos mais próximos com medo de uma plateia vazia. A apresentação, que seria única, durou uma semana. Agora, Gal Costa se junta às estrelas que a viram desabrochar naquela oportunidade, iluminando outros artistas que, assim como ela, buscarão seus sonhos e iniciam suas caminhadas naquele mesmo palco.