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Morto aos 70, Ravengar usou imagem de benfeitor e laços na imprensa para manter controle

Prisão do ‘Dono do Pedaço’ em 2004 deu início à era sangrenta das facções (Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) 

A edição da revista Veja de 8 de novembro de 2000 causou rebuliço em Salvador por apresentar para o Brasil inteiro um personagem famoso na crônica policial da cidade à época. Era a primeira vez que a grande imprensa dava atenção à trajetória do homem que dominou durante quase dez anos o comércio de cocaína na capital e construiu um império do tráfico no Alto do São Gonçalo do Retiro, gerenciado a partir da fortaleza erguida por ele no Campo do Águia, coração da comunidade que dominava. Com o título “Dono do Pedaço”, a reportagem traçava o perfil de Raimundo Alves de Souza, o “Raimundão”, também conhecido como “Ravengar”, morto na última quinta-feira (08) aos 70 anos.

Embora deixasse claro o histórico criminoso de Raimundão, o material de uma página publicado pela Veja tinha como foco principal o trabalho social do chefão do tráfico voltado às quase 16 mil pessoas que habitavam o Alto do São Gonçalo. Ao longo do tempo em que abasteceu diariamente os doidões e usuários ocasionais de cocaína em Salvador, o dono do pedaço construiu creche e posto de saúde, reformou o posto policial do bairro, patrocinou o time de futebol da comunidade e bancou grupos musicais da periferia. Se um morador ficava sem gás de cozinha, ele resolvia. Se faltava remédio para alguém doente ou comida na mesa de uma família, bastava acioná-lo.  

Para manter a tranquilidade necessária aos clientes que subiam e desciam sem parar o Morro do Águia, seja em horário comercial ou nas madrugadas profundas, Raimundão formou um tipo de guarda pessoal, a quem cabia a missão de coibir toda sorte de crimes em seus domínios. Assaltos, estupros, homicídios, agressões e até brigas entre vizinhos eram repreendidos com energia pela tropa de seguranças que atuavam como polícia paralela. Quem conheceu de perto a rotina do Alto do São Gonçalo até o início dos anos 2000 costumava dizer que adquirir cocaína lá era tão ou mais seguro que fazer compras em um supermercado.   

Durante o tempo em que Ravengar ocupou o posto de soberano do narcotráfico na capital, a violência foi quase inexistente no reino sob seu controle. Salvo quando autorizada pelo próprio chefão. Não era segredo que existia um acordo tácito entre ele e integrantes das forças de segurança do estado. Policiais recebiam propina para fazer vistas grossas sobre o comércio de drogas no local e evitar obstáculos à clientela, em parte composta por gente da elite. Em contrapartida, o traficante se comprometia a manter a criminalidade restrita à venda de cocaína no Morro do Águia, sem expandir os tentáculos para outras regiões da cidade.

Maior fornecedor de cocaína do estado tinha elo estreito com jornalistas   
O perfil de traficante com verniz de benfeitor social e empenhado em consolidar a imagem de criminoso pacificador, uma espécie de Robin Hood do Morro do Águia, era reforçado pelas ligações com inúmeros profissionais da imprensa, incluindo jornalistas conhecidos. Reza a lenda, corroborada por nomes da velha guarda ouvidos para esta reportagem, que Ravengar começou a erguer seu império do pó servindo de ponte entre fornecedores de cocaína e redações de jornais, além de artistas e personalidades da high society. Após se firmar no topo do tráfico, continuou com acesso livre a jornais e emissoras de televisão. 

Frequentemente, costumava enviar “presentinhos” para a rede de jornalistas que mantinham relações estreitas com ele. Alguns, inclusive, chegaram a trabalhar diretamente para Raimundão. Caso de dois célebres profissionais especializados em cobertura policial que fizeram fama na Bahia durante os anos 1980 e 1990. Duas décadas atrás, este repórter, então iniciante no jornalismo investigativo, acompanhou um colega veterano em outra rotineira visita ao traficante, a quem tratava como amigo. No interior da fortaleza do Alto de São Gonçalo, foi convidado a jantar com o chefão e sua esposa, Sueli Napoleão, a primeira-dama do morro.

Parte da proximidade de Ravengar com a imprensa se traduzia em espaços para divulgar a programação musical do Mega Show, casa de eventos criada por ele nos arredores da Barros Reis e inaugurada em 1999 por ninguém menos que a banda Planet Hemp. Além de lugar garantido nas agendas de jornais, o traficante investia alto em publicidade nas emissoras de rádio e TV para anunciar apresentações de artistas de peso, como Alcione, ou de grupos empresariados por ele, caso dos regueiros do Morrão Fumegante, liderado pelo cantor Sine Calmon.

Prisão fragmentou narcotráfico e abriu caminhos para o avanço de facções
O reinado de Ravengar começou a ruir em fevereiro de 2004, após ser preso em uma ação cinematográfica, na qual foi baleado. A queda do “dono do pedaço” modificou a dinâmica do narcotráfico em Salvador. Sem o líder no comando, o espaço foi fragmentado e ocupado por diversas facções que travam hoje uma disputa sangrenta marcada pelo terror em bairros periféricos. Fora do trono e preso, Raimundão tentou dominar a Penitenciária Lemos Brito, chegando a imprimir uma cartilha com regras para os demais detentos, publicada pelo Correio em 3 dezembro de 2009. 

Cobrava dinheiro para garantir a segurança dos presidiários, a quem extorquia. Cinco dias depois, nova reportagem divulgou o teor da carta enviada por ele ao jornal, na qual se dizia injustiçado. Aos 70 anos, já no ostracismo, morreu de forma incomum para chefões do tráfico: em vez de assassinado, sucumbiu às sequelas da diabetes.

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